Quem acompanha o blog sabe do carinho que tenho pelo cineasta americano Todd Solondz. Ironia, sarcasmo, violência psicológica, senso de humor doentio e ousadia em abordar temas considerados tabu são alguns dos traços da assinatura estética do diretor.
No Festival do Rio, o realizador foi representado por “A vida durante a guerra” (2009), que estreia no circuito comercial dia 19 de novembro, pela Imagem Filmes.
Infelizmente a produção passa longe do brilhantismo autoral de “Bem-vindo à casa de bonecas” (1995) e “Histórias proibidas” (2001), e frustra a expectativa de quem esperava ver o cronista da esquizofrenia dissimulada da classe média americana em sua melhor forma.
Tentativa malsucedida de emplacar uma continuação de “Felicidade” (1998) – que muitos apontam como a obra-prima da cinematografia de Solondz −, “A vida…” não consegue transcender sua matriz e desliza na sina das franquias: as sequências (na maioria esmagadora das vezes) deixam a desejar. Estaciona no plano da mediocridade.
A narrativa retoma o cotidiano das irmãs Jordan, que servem de amostra para que Solondz exerça sua alquimia reversa e transforme ouro em algum tipo de material radioativo. Aos poucos, o veneno do diretor deteriora a hipocrisia moral e revela uma sociedade profundamente transtornada.
Os subúrbios americanos, retratados como verdadeiros depósitos de traumas e perversões escamoteadas, são terreno fértil para os exercícios estéticos ácidos de Solondz, o Pasolini do american way of life.
Desta vez a história traça um paralelo entre o que aconteceu com as irmãs-protagonistas Joy, Trish e Helen, interpretadas neste novo filme por Shirley Henderson, Allison Janney e Ally Sheedy respectivamente, e o legado de perturbações psíquicas que seus círculos de relações sociais e familiares (principalmente os filhos de Trish) herdaram.
O H2SO4 (ácido sulfúrico) estético derramado por Solondz no verniz que disfarça o poço de neuroses e falsa moralidade no qual se afoga a classe média ianque não teve o mesmo efeito corrosivo de “Felicidade”. Talvez por ser uma fórmula gasta, explorada sem maior criatividade. O filme mais parece uma obrigação contratual (caça-níqueis) da qual o diretor quis se livrar logo.
Alguns diálogos depressivo-inteligentes (que nos forçam a ler nas entrelinhas), marcas da excelência de trabalhos anteriores, salvam determinadas cenas e impedem “A vida…” de ser um fracasso total, mas é só. Doeu no coração ter de escrever tudo isso…
Galera, desculpem o atraso. A promessa de publicação era de 5 em 5 dias, mas a minha (mais do que festejada) alegria de eleger o Lindberg Senador pelo Rio de Janeiro unida à minha (mais do que revoltante) amargura pela não eleição da Dilma no primeiro turno me afastaram do espaço virtual.
Voltando à ocupação #FestivaldoRio, vejam algumas das “pérolas” em 140 caracteres encontradas na hashtag. Valerá para afastá-los de bizarrices nos próximos dias e aproximá-los dos títulos que devem ser conferidos na repescagem ou na distribuição em salas do circuito exibidor.
Em homenagem ao repórter e crítico de cinema Rodrigo Fonseca, fonte de inspiração e motivação permanentes
Em seu livro Cinema – Entre a realidade e o artifício (2ª Ed., 2007), no capítulo dedicado ao cineasta iraniano Abbas Kiarostami, o crítico de cinema Luiz Carlos Merten diz que, “quando Kiarostami começou a surgir na Europa, no final dos anos 1980, o cinema que dava as cartas nos grandes festivais e no circuito de arte-e-ensaio internacional era o chinês, com Zhang Yimou à frente.” O autor chinês, segundo Merten, “beneficiava-se da beleza de sua mulher na época, Gong Li, que colocava no centro de suas investigações sobre o patriarcalismo da sociedade chinesa tradicional. E no mesmo parágrafo o crítico continua, sublinhando que “Kiarostami não tinha uma mulher tão bonita em seus filmes para torná-los atraentes.”
Merten, ele não tinha. Em “Cópia fiel”, uma das coqueluches do Festival do Rio, Kiarostami determina a revisão obrigatória desse trecho de capítulo para a próxima edição do livro.
Com a estrela francesa Juliette Binoche − laureada este ano em Cannes por sua atuação (desconstrutiva da personalidade) ao estilo “Síndrome de Caim” (1992) − como protagonista de sua metáfora emotivo-afetiva arquitetada com base no ensaio filosófico de Walter Benjamin acerca da reprodutibilidade da arte, o cineasta iraniano afasta, definitivamente, a ausência de beleza das suas produções.
Em “Cópia…”, a estonteante Binoche (basta ela sussurrar palavras em francês em nossos ouvidos para conseguir o que quiser), interpretando Elle, envereda pelos desdobramentos da intrincada disposição origâmica de um relacionamento imaginário com o escritor James Miller (William Shimell), autor de livro (homônimo ao título do filme) no qual defende a ideia de que as reproduções de arte são tão boas quanto as matrizes originais, refutando a perda (negativa) da aura propalada pelo pensamento de Benjamin.
Imersa nas atribulações mais prosaicas da vida, e em busca de algo mais autêntico e original do que sua rotina-de-mãe-solteira, Elle vai de encontro ao pensamento do escritor.
A partir desse momento, Kiarostami, o mestre dos baixos orçamentos, caudatário do neorrealismo italiano – tendo por hábito reduzir sua participação ao mínimo para que o espectador tenha a liberdade de ver, na tela, a vida como ela é −, apela para o conceito de status da sociologia para explorar as facetas (ambíguas e contraditórias) dos protagonistas no entendimento da polarização do relacionamento imantado pelo tempo.
Minimalista, com toda encenação baseada no discurso, “Cópia…” arregimenta o talento de Binoche para arrastar Shimell com ela e colocá-los nos antípodas do afeto representado. Afeto que sofre transformações ao ser distanciado do conceito de amor seminal (original?), conceito que a discussão (uma verdadeira DR em diferentes línguas) dos protagonistas − envolvendo (falsas?!) memórias, histórias, desejos, expectativas e famílias − procura reencontrar (deixou de fazer sentido o que é verdadeiro?).
O filme causará estranhamento em quem não conhece a cinematografia do diretor. Como em “Onde fica a casa de meu amigo?” e em “E a vida continua…”, Kiarostami narra a apoteose da oralidade na empreitada de buscas.
O diretor refinou seu estilo ao longo dos anos. Merten destaca que o iraniano “não inventou o metacinema, o cinema crítico de si mesmo, a linguagem usada para discutir a própria linguagem, mas consegue dar uma lição perfeita sobre o que seja isso [em “Através das oliveiras”]. […] Kiarostami, que já havia mostrado que a vida continua, faz agora um filme dentro de um filme […].”
Em seu novo longa, o realizador sofistica sua gramática estética e envolve o espectador novamente no labirinto da metalinguagem. A leitura de Merten (sobre “Através…”) pode ser espelhada para “Cópia…”: “Kiarostami desconstrói a noção de realismo e, ao mesmo tempo, contrói uma reflexão sobre o cinema como função imaginária, sobre aquilo que o olho da câmera registra e o espectador vê.”
Antagonizando no discurso os diferentes status encenados por Elle e James, Kiarostami fala sobre as contradições entre original/cópia, simplicidade/complexidade, filosofia/cultura popular, originalidade/falsidade poligamia (busca da satisfação na projeção desenfreada, nos outros, de desejos insatisfeitos ou pendentes)/monogamia (ater-se “ao original” como única opção moralmente aceitável) na tentativa não de compreender onde encontramos o essencial − do sentimento que nutrimos pelo outro − que foi extraviado pelas contingências (progressivo esmaecimento da aura/paixão), mas o que é essencial− o hoje ou o ontem?
“Cópia fiel” é uma obra tortuosa, sutil e inteligente. Encontra-se nos píncaros do experimentalismo estético, que tem como bússola a qualidade do diretor para não escorregar na autorreferência tornando impossível a empatia. Na minha opinião, consagra Kiarostami como um dos gênios da autoralidade – postura que desafia o comodismo do olhar (e do pensar).
“[…] O homem é essencial para qualquer conceito de universo. Sem ele, o universo existiria, mas não seria concebido. Este é o milagre do homem. Ele pode imaginar a infinitude terrível e assombrosa do universo, e mesmo assim não ter medo. Mas diante do mistério do tempo e da iminência da morte ainda consegue rir, trabalhar, criar… E amar. […]”
Trecho do diálogo entre os personagens Richard Burton (1925–1984) e Elizabeth Taylor no filme “Adeus às ilusões” (1965), de Lester Anthony Minnelli (1903–1986), diretor americano conterrâneo de Barack Obama, mais conhecido como Vincente Minnelli.
Nos créditos do roteiro salta aos olhos o nome de Dalton Trumbo (1905-1976), famoso pelo seu talento como escritor e por integrar, em 1947, época de caça às bruxas (leia-se supostos comunistas nas entranhas da indústria) promovida pela agenda macartista, a lista negra de Hollywood.
Lendo reportagem acerca do lançamento de livro em homenagem à tirinha As Cobras, de Luis Fernando Verissimo, comecei a imaginar que o roteirista hollywoodiano devia ter um serpentário em rebuliço permanente provocando sua massa cefálica.
Detalhe inusitado: Trumbo, Veríssimo e Harry Potter têm mais em comum do que possam imaginar.
Ambos são ofidioglotas (capacidade de falar e entender a língua das cobras).
Felizmente, fora do universo de J. K. Rowling, essa habilidade, explorada com competência pela ironia de Veríssimo e a filosofia sentimental de Trumbo, não é associada às forças das trevas, mas, sim, ao entendimento da realidade política, social e, no caso de “Adeus às ilusões”, complexo-afetiva que precisamos (ao menos tentar) interpretar sem vícios e preconceitos para um entendimento plural de quem somos e para onde vamos (ou para onde não vamos).
Leia aqui a matéria assinada pela Cora Rónai, publicada no jornal O Globo de hoje, sobre a antologia das Cobras de Veríssimo que chega às livrarias. O escritor merece o nosso carinho.
A morte de quatro cidadãos americanos, em 31 de março de 2004, emboscados na cidade sunita de Fallujah − província iraquiana de Al Anbar, localizada 69 quilômetros a oeste de Bagdá −, um ano após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, desvelou ao mundo uma indústria milionária que se alimenta dos conflitos mundiais como um urubu se refestelando sobre carniça podre.
Os mortos na arapuca de Fallujah não eram civis, muito menos faziam parte do efetivo regular das Forças Armadas americanas. Eles integravam o segundo maior contingente em atuação na guerra do Iraque: um exército profissional de mercenários muito bem pagos, acima das leis civis ou militares e de qualquer código de conduta – que, principalmente aditivado pela política belicista da era Bush, ganhou cada vez mais espaço na agenda das agressivas “relações internacionais” dos EUA.
Toda a podridão que envolve a privatização do aparato militar americano, estratégia iniciada na administração de George W. H. Bush – e inflada por contratos oficiais de cifras milionárias com o governo, que só fizeram aumentar −, impulsionada pela paranoia pós-atentados de 11 de setembro de 2001, foi minuciosamente abordada no (essencial) livro Blackwater: a ascensão do exército mais poderoso do mundo, do jornalista investigativo americano Jeremy Scahill, o Caco Barcellos da terra do Tio Sam.
Para quem quer entender o que existe por trás da mobilização da indústria da guerra ianque em solo iraquiano (e não só), essa obra é fundamental.
Não sei se o diretor Ken Loach leu o livro, mas com certeza as ondas de propagação das consequências do trabalho jornalístico de Scahill, mesmo indiretamente, influenciaram o projeto de concepção de “Route Irish”, novo longa do realizador inglês e uma das produções mais concorridas do Festival do Rio.
Loach focaliza com suas lentes o calvário existencial do mercenário Fergus, interpretado por Mark Womack que, após perder o amigo de infância Frankie (John Bishop) – morte pela qual se sente responsável − em território iraquiano, utiliza seus próprios recursos e empreende investigação particular para determinar as circunstâncias exatas da tragédia.
Logo Fergus, auxiliado pela viúva de Frankie (Andrea Lowe), desencava o que poderia ter sido motivo para um assassinato, colocando em dúvida a tese de que o amigo teria sido morto numa emboscada terrorista na via que dá nome ao filme, a estrada que liga a Zona Verde (área de segurança fortificada, no centro da capital iraquiana, controlada pelas Forças de Coalizão) ao aeroporto de Bagdá, considerada os doze quilômetros mais perigosos do mundo: Frankie presenciou a execução a sangue-frio de uma família iraquiana por companheiros de combate, ação que foi gravada pelo celular de um habitante local e que, caso venha à tona, poderia por em risco as operações – muitas vezes duvidosas e sem tipificação legal − de empresas privadas que faturam cifras altíssimas com a indústria da guerra.
De posse das imagens, e perturbado por fantasmas de seus dias de G.I. Joe corsário do capitalismo, Fergus soluciona (ele acredita) em sua cabeça a ambiguidade do vídeo e parte para fazer justiça com as próprias mãos.
Tangenciando o maniqueísmo típico, Loach foge das armadilhas do discurso convencional – que, neste caso, apregoaria corporações malignas x heróis arrependidos em busca de redenção − e cria um labirinto de aparências e fragmentos de informação para, por meio da ótica de Fergus, tentar mapear a perniciosidade de tratar conflitos como oportunidades de lucro.
A obsessão de Fergus enfumaça seu discernimento, e a nossa segurança em rotular mocinhos e bandidos, e coloca em xeque a argumentação que delineia culpados.
O diretor, com o inteligente roteiro de Paul Laverty como argamassa, critica com acidez a política belicista americana atacando seus efeitos em pessoas comuns, que poderiam ser nossas vizinhas quando não estão com um fuzil na mão. Fergus expõe o que há de humano dentro dele ao ser empalado pela dor e, sem o cheiro de pólvora para inebriá-lo e a adrenalina bombeando em sua corrente sanguínea, assimila o que foi capaz de fazer (e o que foi capaz de perder) em troca de uma conta bancária mais gorda.
Empresas como as citadas no livro de Scahill enxergam nos conflitos internacionais mais um mercado a ser explorado − almejando lucros a qualquer preço.
A privatização do aparato militar nacional putrefaz os valores morais e descrimina o Estado por negligenciar suas (ir)responsabilidades constitucionais. Solução perfeita para os xerifes do século XXI, que querem manter sua estrela brilhando (sem nenhum vestígio de sangue) e as engrenagens da economia capitalista funcionando. O filme nos faz pensar.
Carlos Eduardo Bacellar
p.s. O cineasta José Joffily estava na sessão vespertina de “Route Irish” realizada ontem, dia 30/10. Se ele procurava ecos da estupidez ianque focada em “Olhos azuis”, encontrou. Não perguntei ao Joffily o que achou do filme porque ele não me aceitou como amigo no Facebook.
Até o momento, cerceado por restrições e vicissitudes incompatíveis com minha paixão pelo ofício de Truffaut, conferi apenas cinco produções no Festival do Rio. Até o final da maratona pretendo assistir a, pelo menos, mais cinco filmes. Mas quantidade não é sinônimo de qualidade.
Apesar de, até agora, nenhuma realização ter me arrebatado, a árdua luta pelos ingressos foi recompensada com excelentes trabalhos. Já escrevi sobre alguns aqui no blog.
Vou destacar rapidamente mais dois, que talvez sejam os melhores da minha curta lista (só o tempo dirá):
“Líbano” (2009), de Samuel Maoz, filme que levou para casa, em 2009, o Leão de Ouro do Festival de Veneza.
Ambientado na época da Primeira Guerra do Líbano (1982), quando o exército de Israel resolveu invadir o território libanês, o filme desvela os horrores da guerra de forma inusitada. Praticamente toda encenação é sufocada dentro de um tanque de guerra israelense.
Nele (ou melhor, dentro dele), um grupo de militares (jovens recém-saídos de simuladores de jogos de guerra, que nunca atiraram em alguém que esguichasse sangue de verdade) recebe ordens de invadir território inimigo. O diretor midiatiza a guerra pelo periscópio frio de um veículo militar, submerso no sangue de centenas de corpos, em cujas entranhas de metal é incubada a contradição humana.
Ao mesmo tempo que distancia aqueles homens do que ocorre em campo, o ambiente claustrofóbico catalisa os conflitos de pessoas que querem sobreviver – e estão dispostas a tudo para isso, mesmo que seja necessário contrariar ordens, flertar com a loucura e se submeter ao ridículo − a um conflito que beira o incompreensível.
“Essential Killing” (2010), de Jerzy Skolimowski. Vincent Gallo, no papel do protagonista desse ‘No limite’ polonês, com pitadas de ‘Caçado’ (William Friedkin, 2003), arrebatou o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza.
Vincent Gallo, o sujeito passivo de uma das cenas de sexo oral mais impactantes do cinema não pornográfico (“The Brown bunny, 2003), encarna de forma visceral um guerrilheiro afegão (Mohammed) capturado por tropas americanas após ter matado três soldados – o ator, “torturado” pelo diretor, que o colocou em situações extremas, agora verá seus órgãos sexuais procurarem refúgio em seu abdômen ao enfrentar temperaturas abaixo de zero. Levado para local não identificado, ele consegue fugir de seus algozes e se embrenha em terreno selvagem na busca desesperada da liberdade.
Precisando suprir as necessidade mais básicas do ser humano, Mohammed pressente a humanidade se esvair ao se transformar numa espécie de wolverine muçulmano. À procura de comida e abrigo, e digladiando-se contra as intempéries, ele, incapaz de se comunicar pelas diferenças de idiomas – no filme, Gallo só emite ruídos ininteligíveis −, se torna proficiente em mecanismos de defesa, relativizando seus valores morais para garantir que suas funções vitais não entrem na linearidade dos cemitérios.
Vivendo um Bear Grylls às avessas, Vincent Gallo tateia a cartilha ambígua de sobrevivência do sujeito à beira do precipício das privações.
Skolimowski, alijando seu personagem dos insumos capazes de saciar seus imperativos fisiológios básicos (e de sua dignidade), nos lembra da frase de Nietzsche que diz mais ou menos assim: “Quando você olha para o abismo, o abismo também olha para você.”
Ambos os filmes merecem registro, não podem passar em branco.
Este blog é dedicado ao Cinema.
É um espaço impressionista, e não jornalístico.
Nossa pauta é não ter pauta.
Tomara que toda essa doideira pela sétima arte contamine vocês!