A origem do desejo

Nunca fiquei satisfeito com o conto Missa do galo, de Machado de Assis. Algo na narrativa me incomodava, apesar de adorar a sugestão de putaria velada. Refletindo, resolvi me arriscar e reescrevê-lo, dando voz a outros personagens e novas perspectivas para a história. O resultado está aí, inaugurando a seção de ficção no blog.

Fonte: deviantart

Era a chance que eu esperava para me vingar de Meneses. Mulherengo que só, achou que eu ia engolir calada mais uma traição. Pois bem… O Sr. Nogueira não poderia ter se hospedado conosco em melhor hora. Já estava pensando em me engraçar para o primeiro desconhecido que me olhasse com concupiscência, tamanha minha fúria. Mas é melhor que seja assim. As piores decisões são tomadas de cabeça quente. Com um conhecido tornará tudo mais doloroso para meu marido, mulherengo incorrigível.

Chegou minha hora de ir ao “teatro”; a ribalta nunca esteve mais próxima. O Sr. Nogueira não é nenhum protagonista, devo confessar… Coitado, sempre sozinho, imerso nos estudos, poucas (um eufemismo) relações… Duvido que, aos dezessete, tenha experiência com mulheres, o que tornará tudo mais divertido. Mas cumprirá seu papel como um bom coadjuvante, tenho certeza. Se necessário, será rebaixado a figurante para fazer o que deve ser feito. Só é preciso um pouco de provocação.

Esta noite será perfeita! Meneses foi para sua farra habitual. O menino prolongou sua estada conosco até o Natal, para ver a missa do galo na corte. Vai ver coisa muito melhor! Certamente mais interessante que a missa. Só depende dele. Antes de o galo cantar, a jeba há de levantar! Deus que me perdoe, mas é melhor arder no fogo do inferno que ser consumida pelas labaredas que me incendeiam por dentro.

Pelo que percebi, ele nem pretende dormir, já que aguarda vestido na sala da frente. Ótimo! Pensa que me recolhi. Vou aguardar mamãe cair nos braços de Morfeu e mostrar que esta balzaca ainda tem muita lenha para queimar. E lenha da boa!

Meneses… Esse não merece a mulher que tem. Permaneci calada tempo suficiente. Confusa e obliterada pela raiva, no começo, quase cometi o desatino de meter-me com escravos. Seria muito fácil – e compensador, já que dizem que os negros são anatomicamente avantajados. Eu mando, eles obedecem. Mas só daria a Meneses munição para destruir minha reputação. Mamãe, aquela cobra conivente, ajudaria meu marido a me apedrejar. Nada melhor do que esfriar a cabeça e aguardar o momento certo. E talvez o modo certo… Quem sabe a dúvida não pode despedaçar mais que a tristeza? Lembrei-me de Capitu. Bentinho se tornou prisioneiro de sua própria imaginação, alimentada pelo ciúme. Melhor que a concretude da confirmação é a falta de chão da incerteza. Veremos pelo andar da carruagem… Sabendo depois Nogueira de todos os contornos da verdade ou não, quero consumar o adultério.

O Sr. Nogueira… Pensa que não percebo… Fica me olhando de soslaio e, quando confrontado, dissimula. Acredita que eu deveria ser canonizada. Vamos ver o que ele acha de colocar as mãos numa santa que arde de raiva e de luxúria. Afinal, quem disse que vingança e prazer não podem caminhar de mãos dadas? É chegada a hora. Vamos assustar o garoto. Este roupão não me entrega, mas me condena.

— Ainda não foi?

Não sabe nem como reagir… Fica me olhando com cara de bobo.

— Que é que estava lendo? 

— Gosta de romances?

E embarcamos num papo chato sobre literatura. Tinha que mudar logo o rumo daquela prosa, ou seriam horas de ele partir para ver a missa.

— D. Conceição, creio que são horas, e eu…

Pensado e feito…

– Não, não, ainda é cedo…

Sinto que ele me deseja, mas me respeita. Até que ponto? Todos têm um ponto de ruptura. Botões e cintos masculinos certamente. Quanto tempo será que ele aguenta segurar as calças no lugar? Levanto e passeio próxima, pensando no que fazer. Digo que a missa não tem nada de especial, é a mesma da roça. Não percebe, Sr. Nogueira, que há outra liturgia, a da carne, muito mais interessante?

Vou instigá-lo à ação. Hora, é ou não é homem? Começo uma aproximação estudada, sento-me próxima, provoco com o olhar, as folgas de meu roupão certamente fazendo com que sua imaginação entre em ebulição. Enfim responde alterando o tom de voz, perturbado. Tive que reprimi-lo. Mamãe pode acordar e frustrar meus intentos. Deixo ele respirar por um segundo, um segundo apenas. Nossos rostos estão próximos. Por que não me beija? Estou aqui. Por que outra razão uma mulher casada estaria fazendo companhia a um rapazote no meio da noite se não… Bom, ele precisa decifrar meus sinais e agir. A hora da missa é minha principal rival no momento. O eterno embate entre o sagrado e o profano. Eita, homem mole! Só falta me sentar em seu colo. Não seria má ideia… Seria possível saber com mais precisão se seu sexo me dá mais informações do que ele. Termômetro melhor para a lascívia não há. A estocada por cima das calças, chamamento para o sexo. Inclino-me, outra alteração de voz.

– Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.

– Eu também sou assim.

Ousada, aproximo-me ainda mais, fingindo não ouvir direito. Ele fica inebriado com meu cheiro, sinto seu desnorteamento. Por que não me toca? Estou ao alcance de suas mãos, de sua boca. O Sr. Nogueira parecia hipnotizado, atado pelo seu desejo. O que mais é preciso para incentivá-lo? Bato a ponta dos cintos em meu joelho, como que para livrá-lo do transe, e cruzo as pernas. Ele estremece. Não quero que ele passe do torpor ao infarto.

Ai… Ai… Ai… Não pode pensar que estou sendo apenas simpática. Devo estar meio enferrujada. Provavelmente já fui melhor nisso. O casamento pode fazer um mal para nossas artimanhas de sedução. A falta de prática leva à imperfeição. Como eu e Meneses nos afastamos… Juntos sob o mesmo teto, mas indiferentes ao outro. Talvez minha raiva não brote da traição, mas do que pode ter levado meu marido a ela. Terei eu perdido meus encantos? O tempo é inexorável. Este garoto não me achou velha, mas talvez esteja sendo gentil. Há outros freios invisíveis. Estive outro dia na cartomante. Ela vaticinou detalhes da produção de um escritor inglês do século XX, que irá escrever sobre o choque das convenções vitorianas com a revolução moral que está por vir. Tal contradição já ocorre aqui, entre mim e esse água de salsicha. Até mesmo entre as duas que digladiam dentro do mim. Atada pela etiqueta, sobre a qual desliza o estilete do desejo. Estou devaneando… A letargia do Sr. Nogueira me dá sono… Vou acabar pegando no sono. Olho-me no espelho. Não é uma visão muito bonita. Gravuras na parede. Mulheres. Mais belas que eu. Por que não são meus retratos de Dorian Gray?

– Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Meneses para comprar outros.

São bonitos, reponde o Sr. Nogueira.

– São bonitos; mas estão manchados (seria minha visão distorcida que macula as obras?). E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas (estariam elas a salvo do pecado, da prostituição?). Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

— De barbeiro? A senhora nunca foi à casa de barbeiro.

Que rapaz inocente… Uma última investida.

– Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas…

Nenhuma reação. Chegou a abrir a boca, mas engoliu suas palavras. Nesta altura, eu que deveria estar engolindo algo. Voltamos às mesmas trivialidades, o que me aborrecia e me distanciava do meu objetivo. Não trocava mais de lugar. Para quê? Quanto mais me aproximo, menos ele reage. Minha atitude, ou falta dela, se tornou linear como a (falta) de ritmo cardíaco de um cadáver. Sem mais esperanças, comecei a mirar as paredes. Talvez elas se movessem. Os olhos do Sr. Nogueira fugiam dos meus, o que acabou me constrangendo. O que estaria ele pensando? Por fim, o silêncio. Não havia mais o que ser dito. Deste mato não sai coelho, que dirá galo.

Pancada na janela: “Missa do galo! Missa do galo!” Pedi que fosse, não havia por que segurá-lo mais tempo. O momento se foi. Minha desforra teria de ser adiada. Será com ele? Ainda será? Não sei mais… Caso for, estarei realmente disposta a ir até o final? Será que o chumbo trocado realmente não dói? Meu casamento estaria falido? Irrecuperável? Quero recuperá-lo? Alguém ainda se encantaria por mim? Sr. Nogueira vai tão longe, como o som dos sinos…

Antes de deixá-lo, uma provocação final. Andando em direção ao meu quarto fiz dos movimentos de meu corpo a repreensão às rédeas do garoto, que perdeu a oportunidade de ser homem, meu homem por alguns momentos. Os sinos, ainda ouço os sin…

Dona Inácia acorda assustada. Forçada à realidade, ainda desorientada, apalpa o colchão em busca de alguma segurança. Sente-se ao mesmo tempo aliviada, decepcionada, eufórica e constrangida. A hora está avançada. Alguém se movimenta pela casa. Com cuidado, levanta-se para averiguar. Anda sorrateira pela casa. Encontra, na sala, próximo à porta, a origem do ruído, de seu sonho, de seu tormento libertador. É só o Sr. Nogueira. Parece irrequieto, andando nervoso de um lado para o outro. Ah, Sr. Nogueira… “Ansioso pela missa” – por que mais seria? –, pensa D. Inácia, que, após observá-lo no escuro por alguns segundos, volta para seu quarto; sem dançar com seus quadris, sem ser notada, molhada de suor e de tesão.

Carlos Eduardo Bacellar

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