Errata

War on your mind

Fonte: weheartit.com

Um leitor (ou leitora) do blog discordou da minha crítica de “Holy motors”, o que é ótimo, e encontrou uma contradição no meu texto, o que é excelente. Por causa de um erro meu, provocado pelo atropelamento da coerência pelo pensamento revolto, eu disse que “Os amantes do círculo polar” (1998), do diretor espanhol Julio Medem teria servido de matriz para “Sangue ruim” (1986), do francês Leos Carax. Tal situação só seria possível se Carax fosse vidente, já que o filme de Medem foi lançado mais de uma década depois. A falha na construção do raciocínio foi apontada por (AKA) baudelaire — alcunha que remete ao poeta francês Charles Pierre Baudelaire, o que é no mínimo irônico.

Ambos, Carax e Medem, são caudatários do diretor italiano Federico Fellini (1920-1993) e de suas atmosferas feéricas, que transitam entre sonho e realidade. Medem se empenhou em refinar seus poemas audiovisuais de modo a criar uma assinatura estética própria, apostando na interseção entre fantasia/imaginação e o prosaico, enquanto Carax criou pastiches num exercício de antropofagia cinematográfica.

Além de sublinhar a contradição em que incorri, baudelaire, rebatendo meu texto, fez comentários relevantes acerca do diretor de “Boy meets girl” (1984) e de sua relação com Paris, e expôs brevemente sua posição sobre originalidade, autoralidade e identidade. Resolvi importar a troca de ideias do poscênio onde se encontravam os comentários de “Holy motors” e trazê-la para a ribalta. Este post funciona como errata – peço desculpas aos leitores – e, espero, abre um tópico para mais discussões construtivas, que explorem tanto o filme em questão como outras realizações. Por favor, apareçam, baudelaires!

Transcrevo nossa troca de mensagens abaixo:

leos carax é um dos cineastas franceses das últimas três décadas que mais consistentemente desenvolveu uma obra e um estilo que, para não partilhar de seus parâmetros à cerca de originalidade, pelo menos se serviram de matriz e influência para muitos outros cineastas. discordo que originalidade seja parâmetro de valoração estética, estilística, que um autor deva seguir caminho próprio. já é terreno esgotado essa discussão a cerca de autoria, sobretudo no cinema, uma arte eminentemente coletiva. e dizer que os amantes da ponte neuf é um filme que bebe do neorealismo é ignorar sua feitura numa Paris pessoal (marcadamente influenciada por um repertório cinefílico do diretor) e construída em estúdio! quer dizer, trata-se muito mais de uma Paris impressionista e antinaturalista, que uma Paris exposta em carne crua.

a parte isso, não entendi como mauvais sang pode ter sofrido influência, ou melhor, ter tentado reproduzir uma ‘narrativa poética’ de um filme posterior em mais de 10 anos. não sei o que quis dizer com isso…

ps.: não vi holy motors, ainda, e acho que a questão da crise de identidade supostamente debatida no filme multiplica ainda mais os horizontes do sujeito que, todos sabemos, é fragmentário, consiste numa multidão, e negar isso ou diagnosticá-lo como uma crise, um problema, não passa de falta de criatividade.” (baudelarie)

Minha resposta:

Opa! Discussão de alto nível! Discordo que a questão da autoria esteja esgotada. Vai de encontro a tudo que espero do cinema. Quando vejo o trabalho de diretores como Nuri Bilge Ceylan, Fatih Akin, Tarantino, Abbas Kiarostami, entre outros, recuso-me a acreditar que o coletivo eclipsou o individual. Posso concordar que Carax romantiza Paris, da mesma forma que Woody Allen idealizou sua Nova Iorque em “Manhattan” (1979), para ficar no exemplo mais óbvio. Ele arquiteta, como você bem disse, uma Paris “impressionista e antinaturalista”, uma cidade luz muito pessoal – erigida em sonhos, não em concreto e aço. Essa reflexão não nega toda temática neorrealista que grita por trás da encenação. Fico irritado com a obsessão de Carax pela ponte Neuf e pela ereção de Denis Lavant. Com relação à comparação entre “Mauvais Sang” (1986) e “Os amantes do círculo polar”, você tem razão, é uma contradição. Meu pensamento revolto se precipitou sobre a coerência. Ambos os diretores, Carax e Medem, bebem na fonte de um italiano chamado Federico Fellini. O relizador espanhol reverteu sua narrativa poética, delineada por elementos feéricos, em projetos de beleza singular. Já Carax não consegue nada mais do que um pastiche da obra felliniana, apostando naquele reme-reme de almas fadadas à segregação num ambiente urbano e cultural que salienta os contrastes sociais e emocionais. Nunca neguei esse “deslizamento do sujeito”, como bem disse meu amigo e crítico Luiz Fernando Gallego, nem o classifiquei como crise, já que constitui o mosaico de que somos feitos. Só que Carax não multiplica, e sim fatora, decompondo suas identidades em simulacros de outras fontes.

Assim como demonstrado por um dos personagens de “Os amantes do círculo polar”, pode ser que haja alguma presciência na obra do francês. Ele, bem como o tailandês Apichatpong Weerasethakul, estaria à frente de seu tempo. Grande parte da crítica acredita nisso. Eu não. Ninguém está totalmente certo nem totalmente errado, pois estamos falando de arte – e arte é disenso. Só o futuro dirá quem conseguiu focar com mais acuidade os elementos significativos (negativos ou positivos) da proposta estética de Carax.

Saliento que a minha opinião é só mais uma opinião, e não a opinião.

Quero deixar registrado que respeito suas opiniões, todas relevantes, e reconheço meus tropeços. Assista ao filme para podermos conversar mais.

Apareça sempre. O blog precisa de mais comentários como o seu.

 Carlos Eduardo Bacellar

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Uma resposta para “Errata

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