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Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Todos os dias.

“Minha intenção era protelar as coisas ao máximo, e começamos de um jeito manso. Um reencontro de corpos, o reconhecimento de um terreno nunca decifrado por completo. Mas não demorou para esquentar, e quando vi estávamos à beira do precipício. Meu orgasmo chegou como uma dor. Percebi que Lavínia queria mais e fiz o que pude, mas não adiantou. Eu me sentia exaurido e tive de pedir uma trégua. Ela riu e disse:

Eu espero.

(…)

Até que encontrou o que procurava na bolsa e me entregou.

Eu trouxe pra você.

Uma caixinha de madeira, uma arca em miniatura, fechada com um cadeado minúsculo. Sacudi a caixinha, mas não ouvi nenhum som.

Tem uma mensagem pra você aí dentro, ela disse. Mas você só deve ler num dia em que estiver desesperado.

Bem desesperado?

É.

Lembrei dos dias que passei sem ela. Dias em que encontrar, por acaso, um fio de seu cabelo preso na fronha do travesseiro bastava para me encher de angústia e dor. Estive a ponto de rastejar. Atire a primeira pedra aquele que não estremeceu ao recuperar nos lençóis encardidos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mulher ausente.

Eu sentia uma felicidade vulnerável naquele momento, contaminada pelo temor de que Lavínia sumisse de novo. Pensei no pastor Ernani. E dei um golpe baixo:

Que tipo de mensagem? Religiosa?

É uma coisa que escrevi pensando em você.

E a chave do cadeado?

Não tem, ela explicou. Aí é que está a graça: você vai ter que quebrar a caixinha pra ler a mensagem.

É mérito de Marçal Aquino em “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” fugir do lugar-comum dos romances contemporâneos. Perito no retrato criminoso do submundo, o escritor e jornalista  abusa do vigor policial, direto e fotográfico – o mesmo que tanto me encanta em Rubem Fonseca – ao narrar o triângulo amoroso vivido pelo fotógrafo Cauby, pela ex-prostituta Lavínia e pelo pastor evangélico Ernani, num terreno de conflitos: o Pará da exploração mineral.

É a partir do interesse comum pela fotografia que nasce a história de amor do desempedido Cauby com a casada  Lavínia. Se a narrativa utilizada por Marçal para descrever a paixão avassaladora de Cauby e Lavínia já vale o livro, o escritor é ainda mais surpreendente ao construir personagens interessantíssimos, como o pervertido sexual e o pastor, que misturam-se a Lavínia e Cauby, e ajudam a contar a história de um vilarejo “terra de ninguém”, onde ambição, riqueza e prazeres da carne parecem conviver em perfeita desarmonia – são vastas as referências à cinematografia western de Sergio Leone.

E nada melhor que uma região cheia de distorções, fanatismos religiosos, disputas por terras indígenas, derramamentos de sangue, onde mitos de herói são descontruídos o tempo todo, para fazer florescer naturalmente um sentimento intenso e verdadeiro, o amor de Lavínia e Cauby: duas pessoas de histórias e origens distintas mas parecidas em suas lutas pela sobrevivência e contra a solidão.

A adaptação cinematográfica

Se melhorar, estraga. Assim definiria a parceria de Marçal Aquino com Beto Brant. É de extrema competência a adaptação literária às telas. A montagem descontínua prende o espectador. Mais do que assertivas são as escolhas do elenco: Camila Pitanga parece que nasceu com a exuberância e o encanto contido de Lavínia; Gustavo Machado constrói Cauby com grande sensibilidade desde “O Amor Segundo B. Schianberg” (Beto Brant, 2009);  Zécarlos Machado é o Pastor Ernani reconhecível das esquinas de todo o país — um tiro na culatra em forma de gente — e Gero Camilo é o pervertido sexual que rouba todas as cenas.  E tudo isso mostrado a partir de lentes objetivas e realistas, que evocam o que há de mais lírico na “terra de ninguém” de uma relação a dois.

Helena Sroulevich

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