No peito do repórter e crítico de cinema Rodrigo Fonseca bate um coração de aço. Mas ele não é inoxidável. O senso comum nos alerta para o fato de que, após anos cobrindo pautas, o profissional de imprensa pode se tornar insensível ao componente humano, decantado da informação pelo implacável filtro editorial. Aqueles que erigem uma armadura psíquica ao seu redor – calcificada pelo ceticismo e pela indiferença – tornam-se impermeáveis às emoções (visando a manter o controle e a cumprir prazos) ao mesmo tempo em que sufocam em seus próprios sentimentos, enfumaçando o cárcere orgânico. Felizmente, não é o caso do Rodrigo.
No livro Como era triste a chinesa de Godard (ed. Record), título do romance de estreia do jornalista, o músculo cardíaco de Fonseca, ou melhor, dos Fonsecas, é corroído pela ferrugem da carência de alguém que vive à margem, mas almeja o centro, penetrar.
O lançamento da obra será no próximo dia 26, quarta-feira, na livraria Blooks do Unibanco Arteplex (Praia de Botafogo, 316 – Rio de Janeiro). A sessão de autógrafos, agendada para as 20h, será precedida de debate sobre a linguagem audiovisual na nova literatura brasileira, que terá início às 19h. Mediado pela jornalista Simone Magno, o colóquio contará com a participação do autor da tristeza sino-francesa em celulose, Rodrigo Fonseca, e dos escritores Ana Paula Maia e João Paulo Cuenca.
Batendo punheta mental como um Joaquim Ferreira dos Santos adolescente, que se drogou na cinefilia de Michel Gondry com a agulha contaminada de Brian de Palma, ele ejacula o roteiro de um filme D (de dor de cotovelo). Anti-herói(s) dos subúrbios com tesão latente (pelas carnes e pelas palavras), o(s) eu(s)-narrador(es) do escritor, Renato e seus restantes, ou vulgo Renato Etecétera, abre(m) o peito por onde é vertido um jorro de consciência irrefreável, protesto solitário que encontra sentido na subjetividade – registro que, emulando a narrativa de fluxo de pensamento de Raduan Nassar, se estica no precipício, sustentado por cabos de controles de videogame, e tenta se firmar como um Lavoura arcaica da contemporaneidade.
Como numa espécie de diário íntimo sobre os porquês do pé na bunda e os tipos de unguentos necessários para sua cicatrização – boa medida da resiliência do afeto, que coloca na berlinda a fé no amor –, Fonseca promove, durante uma ressaca de referências cult e pop, uma revolução de libertação da consciência similar à experimentada pelos jovens acuados num apartamento por Jean-Luc Godard em “A chinesa” (1967).
O filme reverbera no livro outra vertente do terrorismo psicológico: no impresso, dinamitando o autorrespeito, terreno no qual germinam as inseguranças e a baixa autoestima; no audiovisual, impregnando a juventude pré-revolucionária com a ideologia maoísta. Sempre oprimido pela inadequação, o indivíduo se afoga em seus dramas.
La chinoise de Etecétera é ao mesmo tempo sua perdição e salvação. Tal oxímoro é desanuviado pelo escritor argentino Ricardo Piglia, que elucubra (também) sobre o amor como clichê narrativo no magistral Formas breves. Piglia reflete com os pensamentos na tradição do tango: “O homem que perdeu a mulher olha o mundo com olhos metafísicos e extrema lucidez. A perda da mulher é a condição para que o herói do tango adquira essa visão que o distancia do mundo e lhe permite filosofar sobre a memória, o tempo, o passado, a pureza esquecida, o sentido da vida. O homem ferido no coração pode, por fim, olhar a realidade como ela é e perceber seus segredos […]. O homem enganado, cético, moralista sem fé, vê enfim a verdade.” No livro do Rodrigo, o(s) eu(s)-narrador(es) dança(m) com suas ideias e apreende(m) a realidade em ritmos variados: Supertramp, Depeche Mode, Black Eyed Peas, Roberto Carlos, Biquíni Cavadão, Jair Rodrigues, Keane… simbora, DJ!
Embaralhando histórias pessoais (e profissionais), ficção, realidade e deformações de todas essas dimensões, conformando-as ao estado de pungência psicológica do(s) eu(s)-narrador(es), mockumentary de aflições, somos submetidos a uma overdose de idiossincrasias que teimam em inquietar. O leitor desavisado, habituado ao trabalho do Rodrigo no jornal, toma um susto quando ele tira a armadura do repórter e fica nu, raspando sua ferrugem com as próprias unhas. E aquele pó vermelho da oxidação cheira a sangue. Com o construto de uma lança forjada em metáforas, ele se abstrai de orgulho e vaidades, atravessa peito com o verbo afiado e se esvai para o leitor numa esquizofrenia (calculada) ultrarromântica.
Se o livro é bom? Respondo com outro questionamento: quer que eu seja franco ou sincero? Segundo o autor, são termos antônimos: “franqueza é cuspir o que se quer da boca, sem se preocupar com os estragos da chuva ácida que o perdigoto pode gerar em tímpanos carentes. Sinceridade é a verdade de meias.” Os heterônimos de honestidade.
Franqueza e sinceridade são intrumentos insuficientes para tatear literatura, pois ela se espreme entre a trangressão de opostos, equilibra-se entre paradoxos. Os “antônimos” partem do pressuposto de verdades interiores – portanto relativas – que sustentam, de forma frágil, o próprio pilar de representações em que ela, a literatura, se fundamenta. A resposta para a pergunta é uma outra interrogação, que encontra em quem lê verdades travestidas de mentiras – criando identificação ou repulsa e fomentando novas dúvidas. Por isso minha opinião não tem a menor importância, mas faz toda a diferença. E ler, todo o sentido.
Carlos Eduardo Bacellar