Arquivo do mês: agosto 2012

Célula-tronco da amizade

Esta história é baseada em fatos irreais.

Eventos traumáticos podem dissociar o corpo da mente. No acidente de parapente que o deixou paralisado do pescoço para baixo, Philippe (François Cluzet) tentou se agarrar aos seus pensamentos no momento da queda, mas eles teimaram em ficar flanando lá no alto, enquanto o milionário francês era apresentado à Lei da Gravidade e às limitações da ortopedia numa aula prática.

Visto de cima, caindo em queda livre, seu corpo, diminuindo a cada segundo, tornava-se uma metáfora do estado de espírito de alguém numa carcaça danificada, impossibilitada de realizar.

Só que o conceito de realizar é relativo. Philippe encontrou formas de se expressar que prescindiam dos movimentos que, para pessoas sem deficiência, são tão naturais como respirar.

Porém, chega um momento em que a ação é necessária – pois sem ela a vida não tem movimento, e um tetraplégico sempre estaria no último local em que foi deixado –, e Philippe precisa das mãos e dos pés que lhe foram tirados para satisfazer desde necessidades prosaicas, como se alimentar, fazer a barba e tomar banho, até vontades mais complexas, como cortejar uma mulher.

O problema para Philippe é que os membros vêm acompanhados do componente humano, e um tetraplégico sempre instiga a compaixão, último sentimento que o aristocrata deseja aflorar em quem o acompanha praticamente 24h por dia.

A escolha de uma nova “babá” é um trabalho frustrante até aparecer Driss (Omar Sy), um imigrante senegalês que rompe com o protocolo da análise de currículo durante uma entrevista para o emprego. Na verdade ele não tem um currículo. Driss se qualificou no manual de sobrevivência da vida. Sua malandragem o faz gingar pelas brechas da lei.

Intocáveis”, dos diretores-roteiristas Olivier Nakache e Eric Toledano, consegue, com uma química inteligente, misturar água com óleo ao explorar um relacionamento aparentemente impossível, que evolui para uma amizade inusitada.

Pertencente a outro estrato social, Driss não tem nenhuma condescendência com seu chefe abonado. O trata por brother, em vez de Vossa Excelência. O politicamente correto é deixado de lado. Philippe é apenas uma chateção no começo, um meio para um fim, não uma cumbuca onde pode derramar lágrimas de pena; um boneco de carne, não um objeto de cristal. Era tudo que o cadeirante desejava: uma interação entre iguais, que permita a complementaridade em vez da desigualdade, muito pesada para um lado só suportar.

Omar Sy surpreende ao explorar com competência e segurança o perfil de seu personagem arquitetado pelo roteiro. Construção primorosa, situações criativas, diálogos inteligentes, trocas precisas entre os personagens, humor woody-alleniano (autodepreciativo), rompimento de tabus, andamento atraente… A narrativa envolvente desta produção francesa oblitera o fato de que Philippe é um tetraplégico. Temos somente dois caras curtindo juntos. Nem as sugestões políticas sobre a questão da imigração na Europa e as discussões acerca da criação dos filhos, apêndices da linha mestra, perturbam a harmonia do filme — obrigatório para quem for ao cinema neste fim de semana. “Intocáveis” se esquiva tanto do drama barato e da pieguice, de um lado, como da história edificante e virtuosa, do outro.

Mesmo se Philippe possuísse as habilidades telepáticas do Professor Charles Xavier, vulgo Professor X, a sintonia não seria tão fina com Driss. Na escala que vai da depressão à felicidade, que tem como marco zero a desistência de “Mar adentro” (2004) e a opção pela eutanásia, passando pelas possibilidades inortodoxas de “O escafandro e a borboleta” (2007) que conferem sentido ao existir, chegando ao aproveitamento pleno de “Perfume de mulher” (1992), Driss consegue empurrar a cadeira de rodas de Philippe além, até a euforia hedonística de “Hasta la vista” (2011). Nem a neurociência de Miguel Nicoelis faria melhor.

Driss não deixou Philippe perder suas ideias de vista, aquelas que ficaram lá em cima no momento do acidente. Agora, com sua normalidade recuperada, ele olha para cima, e de sua cadeira de rodas enxerga um gigante familiar. Funcionando como uma pipa, atrelados ao seu hot wheels edição limitada com assinatura de Stephen Hawking, os pensamentos de Philippe não conhecem limitações e o impulsionam para cada vez mais perto de si mesmo. Eventos traumáticos podem dissociar o corpo da mente… Ou aproximá-los ainda mais. É na interseção entre matéria e imaginação que a existência é mais intensa.

Carlos Eduardo Bacellar

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360, o Ângulo

Quase um efeito etílico. Meu estado era daquele rodopio do protagonista de “Cidade de Deus” (2002) em meio ao fog névoa de “Ensaio sobre a Cegueira” (2008) após uma viagem por três continentes como um “Jardineiro Fiel” (2005). Saí de “360” trocando de escada rolante, em vez de pegar a que desce.

Em breve instante, lembrei que foi por umas experiências com corpos em queda (em planos inclinados) que Galileu acabou perseguido pela Inquisição. Mas Newton me salvou antes de me espatifar no chão.

Vejam como se pode combinar Cinema e Física… “360” é um mosaico ensandecido, picotado, angustiante e transnacional. Sim. Tudo parece inconcluso numa Babel (!) ao quadrado, por isso há quem diga que, por pecado de roteiro, esse não é o melhor filme de Meirelles… Personagens e episódios se interrompem, entrelaçam-se quase ou apenas se esbarram, conectam-se no detalhe – a boina vermelha, a pilastra no aeroporto. Mas, creia, passado o efeito da saída, percebo que nada falta nessa montagem mágica e cirúrgica (Daniel Rezende), em que Fernando Meirelles ignorou cânones.

Inspirado em “La Ronde” (peça escrita por Arthur Schnitzler em 1897), “360” é o mundo de hoje, o universo que a todos engloba e reduz, entre as perdas, taras e danos. Uma jovem tcheca (Lucia Siposová) nos conduz a um executivo (Jude Law) que chama por telefone a esposa Rose (Rachel Weisz) que, por sua vez, tem um affair com um fotógrafo (Juliano Cazarré) casado com Laura (Maria Flor). Laura encontra um “Old Man” (Anthony Hopkins) num voo, além de um ex-“tarado” (Ben Foster) no aeroporto. Aí este cruza com um argelino, chefe de Valentina (Dinara Drukarova) que logo encontra com quem? O “Old Man” e a roda gira… em Viena, Paris, Londres, Rio de Janeiro, Bratislava, Denver, Phoenix. Seja Hopkins com Flor (Que orgulho!), ou Cazarré com Weisz (Idem!), os personagens são partículas vistas do espaço que se atraem. Lei do gênio Newton.

Quiçá simples elos no horizonte como se a terra plana fosse, cada personagem em sua pequenez – a nossa – é uma identidade plena. Como diz Anna (Gabriela Marcinkova), para ser salvo na ronda, basta escolher um caminho na bifurcação. E basta, porque toda história é essa.

Claudia Furiati

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Ato de fé

Não confunda “Man on a ledge”, do diretor Asger Leth, com “The Ledge”, de Matthew Chapman. O impulso suicida que dá início às duas produções camufla com o suspense motivações diferentes – nossa miopia é inversamente proporcional à dos protagonistas, que, ameaçando se jogar do alto de prédios, conseguem enxergar o quadro maior.

No primeiro filme, a suposta tentativa de suicídio desvia as câmeras da mídia e os holofotes das forças de segurança de um roubo dentro do padrão de qualidade Danny Ocean. Nem diga isso perto de Joe Harris, personagem de Patrick Wilson em “A tentação”, obra de Chapman, pois você vai receber um sermão na tentativa de livrá-lo do inferno. O pastor fundamentalista certamente acha que “Man on a ledge” – ou “À beira do abismo”, título nacional do longa – é coisa do demônio.

Em “A tentação”, Chapman, roteirista que se inclina para os mistérios da literatura de Agatha Christie, vide “A cor da noite” (1994) e “O júri” (2003), ambos escritos para as telas por ele, mensura a preponderância de fé e ateísmo na conduta de seus personagens quando coração e pele tentam com o desejo – tanto salvação como perdição.

Os caminhos do pastor Joe Harris, de sua esposa, Shana (Liv Tyler deslumbrante, a derrocada de quem enfrenta seu olhar e teima em não se entregar, com sua pele de porcelana e sua boca carnuda que parece fruto de um processo alérgico a camarão) e do fura-olho Gavin Nichols (Charlie Hunnam) se cruzam no ponto em que crença, racionalidade e prazer desmagnetizam a bússola do bom-senso.

Num esforço de catequização, Joe tenta aproximar Gavin de sua fé, sem sucesso. A manobra de conversão apresenta efeitos colaterais: Gavin permite que um encantamento inicial pela esposa do pastor se transforme em paixão. Quem pode culpá-lo? O sentimento é recíproco. Atentada pelo clamor de seu corpo, que faz com que ela se contorça em volta de si mesma num leito matrimonial frio, Shana se entrega ao relacionamento extraconjugal. Como em “Homens em fúria” (2010), de John Curran, a dificuldade em conjugar, no longo prazo, tesão e respeito implica o ocaso da vida a dois, que, em certos casos de falência do querer, encontra a traição como subproduto da indigência do afeto e da orfandade da pele.

Joe descobre e, desnorteado pelo caso da mulher, procura nas escrituras algo que justifique a conduta exigida por seu lado humano – seu lado falho. Neste ensaio sobre os limites da fé, encarcerada (paradoxalmente) em dogmas ambíguos, a vontade, sempre egoísta, encontra sua maneira de se esgueirar pelas palavras e torcê-las para que esbocem nossos sentimentos. Escritas como tábuas de salvação, podem se tornar veneno.

Interpretadas arbitrariamente, podem significar (e permitir) tudo, como “Red State”, de Kevin Smith, e a tragédia de 11/9, sublinhada no roteiro, deixam assustadoramente claro. Tomado pelo ódio, Joe sequestra a esposa e obriga Gavin a pular de um prédio. O mergulho no vazio tem hora certa. Caso contrário, Shana morre. Tique-taque. O policial Hollis (Terrence Howard), imerso em seu próprio tormento existencial ele atravessa uma dor semelhante à do pastor Joe –, é o responsável por dissuadir Gavin de virar panqueca no asfalto. Um cético desesperançoso tentando convencer o outro. Irônico.

As contradições são destacadas pela crise. Joe mistura sagrado e profano num coquetel de desespero, respeito ferido e vingança. E Gavin resolve pagar por uma falha do passado. Na concepção dele, não há nada de bíblico em tirar a própria vida. Mas só o fato de acreditar que pode salvar a mulher que ama se atirando para a morte é um ato de fé.

Carlos Eduardo Bacellar

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