Arquivo da categoria: Filmaço!!!

Melhores e piores de 2015

the_heroes_gone_to_the_cinema_by_jonigodoy

Fonte: deviantART (by JoniGodoy)

Melhores de 2015

Minha lista com os 10 melhores filmes exibidos (em sentido amplo, já que as fronteiras do “circuito comercial” foram expandidas pelas possibilidades da internet) no Brasil em 2015. Sei que posso ser considerado parcial, mascarado ou simplesmente lunático, mas acredito que minha lista é a melhor de todas. Já considero o evento anual uma curadoria para o enriquecimento cultural da humanidade:

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010);

“Nostalgia da Luz” (Patricio Guzmán, 2010).

Um vez que as auditorias independentes de IMDb, Variety e Indiewire não permitiram que um único filme figurasse na lista dos 10 melhores no blog, tive de ser condescendente e montar uma segunda – motivo do atraso da postagem. Aí vai:

“Birdman ou (a inesperada virtude da ignorância)” (Alejandro González Iñárritu, 2014)

“Casa Grande” (Fellipe Barbosa, 2014);

“O cidadão do ano” (Hans Petter Moland, 2014);

“Dois dias, uma noite” (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2014);

“Mad Max: Estrada da Fúria” (George Miller, 2015);

Considerações: Tarantino não pode estar errado.

“Mapas para as estrelas” (David Cronenberg, 2014);

“Que horas ela volta?” (Anna Muylaert, 2015);

“Star Wars: o despertar da força” (J. J. Abrams, 2015);

“Whiplash” (Damien Chazelle, 2014);

“Winter Sleep” (Nuri Bilge Ceylan, 2014).

Se a edição permitisse uma lista estendida… Peraí! Ela permite! Não há restrições aqui. Segue a projeção:

“O ano mais violento” (J.C. Chandor, 2014);

“Beast of No Nation” (Cary Joji Fukunaga, 2015);

“Cássia Eller” (Paulo Henrique Fontenelle, 2015);

“Chatô, o rei do Brasil” (Guilherme Fontes, 2015);

“Enquanto somos jovens” (Noah Baumbach, 2015);

“Ex Machina” (Alex Garland, 2015);

“Homem-Formiga” (Peyton Reed, 2015);

“Mistress America” (Noah Baumbach, 2015);

“Sicário” (Denis Villeneuve, 2015);

“Velozes e furiosos 7” (James Wan, 2015).

Piores de 2015

O Grito_C3PO

“50 tons de cinza” (Sam Taylor-Johnson, 2015);

“Adeus à linguagem” (Jean-Luc Godard, 2014);

Considerações: não vou eleger um filme do Godard pelo simples fato de ser um filme do Godard. Não embarquei na viagem filosófica lisérgica acerca do mundo cão num caleidoscópio imagético proposta pelo diretor. O filme estabelece um oxímoro: deveria haver limites para o experimentalismo.

“A entrevista” (Evan Goldberg e Seth Rogen, 2015);

“Insurgente” (Robert Schwentke, 2015);

“Jogos Vorazes: a esperança – parte 2” (Francis Lawrence, 2015);

“Love” (Gaspar Noé, 2015);

Considerações: fico com as produções da Brasileirinhas.

“Maze Runner – Prova de Fogo” (Wes Ball, 2015);

“Uma noite no museu 3: o segredo da tumba” (Shawn Levy, 2014);

“Quarteto Fantástico” (Josh Trank, 2015);

“Tomorrowland” (Brad Bird, 2015).

Que a força esteja com todos em 2016!

Carlos Eduardo Bacellar

Deixe um comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!, Fuja dessa roubada!!!

Teoria do Caos

locke-poster

Marcus Messner, 1932-52, o único de seus colegas suficientemente desafortunado para ser morto na Guerra da Coreia, que terminou com a assinatura de um armistício em 27 de julho de 1953, onze meses antes que Marcus, caso tivesse sido capaz de tolerar a igreja e manter a boca fechada, se formasse na Universidade Winesburg – muito provavelmente como orador da turma –, podendo assim postergar o aprendizado daquilo que seu pai, embora pouco educado, vinha fazendo tanta força para lhe ensinar havia muito tempo: a forma terrível e incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais.” (Indignação, de Philip Roth)

Ivan Locke (magistralmente interpretado por Tom Hardy) é um engenheiro civil acostumado à certeza e à frieza dos números. Para seu azar, a teoria do caos que direciona os desígnios da humanidade não permite que cálculos responsáveis pela solidez de edificações antevejam a ruína de uma vida como resultado de atitudes impensadas.

Ao final de mais um dia de expediente, o diretor de construção é surpreendido por uma notícia que adiciona uma incógnita ao seu futuro. Locke vai ser pai. Uma noite de solidão, desejos latentes e oportunidade, regada a álcool, após uma empreitada exaustiva, mas de sucesso, teve como resultado um filho fora do casamento. A bússola moral do empreiteiro altamente magnetizada pela sua experiência pessoal só aponta um caminho.

A partir desse momento, seu carro, onde transcorre praticamente toda a encenção nos pouco mais de 80 minutos do filme, se torna uma célula de sobrevivência – remetendo a “No tempo das diligências” (John Ford, 1939), “Líbano” (Samuel Maoz, 2009) e “Cosmópolis” (David Cronenberg, 2012) – por meio da qual ele deve gerenciar uma série de conflitos a caminho do hospital, entre eles o mais complexo de todos: seu conflito pessoal com a figura paterna numa sessão de terapia pouco convencional.

Com esses elementos, o diretor Steven Knight, mais conhecido por sua atuação como roteirista de séries de TV, cria um thriller psicológico pungente. Partindo dos esqueletos de metal e concreto de um canteiro de obras, Locke, por telefone, precisa se certificar de que sua vida pessoal e profissional não desmorone enquanto tenta chegar a tempo para o nascimento de seu filho – duas contruções pelas quais o engenheiro, cartesiano e pragmático, é responsável.

A fotografia de Haris Zambarloukos transforma jogos de luzes da cidade e das ruas que banham o carro num caleidoscópio que a cada curva, a cada caminho escolhido, propõe um reagrupamento de formas e possibilidades. Locke não acredita no resultado de seu comportamento, um desvio do padrão do pai de família cioso. O trabalho do diretor de fotografia confere uma atmosfera onírica à situação em que Locke se encontra – ou, num outro entendimento, transforma avenidas em cabos de fibra ótica em que a comunicação, impessoalizada pela distância, mas carregada de significados emocionais, não pode ser interrompida, segue num fluxo contínuo em sua própria velocidade. Desplugar não é uma opção.

O exercício primoroso de Zambarloukos com a luz se transforma numa jukebox com trilha sonora das perturbações de Locke, que só toca em seus próprios pensamentos.

O empreiteiro é uma esfera de metal de uma máquina de fliperama. Uma vez lançada (seus atos), desencadeia consequências que não podem ser controladas de todo. O material que a compõe não se deforma (valores), mas ela se desloca caprichosa, quase ao sabor do acaso, impulsionada por mecanismos imprecisos. O filme, que deveria figurar nas listas de melhores do ano, coloca Tom Hardy entre os grandes.

Do caos, dos fractais de um ser humano estilhaçado pelo passado, pelo presente e pelo futuro, Locke vai precisar extrair a ordem.

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. “Locke”, que, se não estou enganado, foi lançado direto em DVD, é a melhor propaganda que a BMW já teve em toda sua existência.

 

Deixe um comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

Olhar são

O menino e o mundo_poster
O diretor Alê Abreu já tinha me ganhado com o seu “Garoto Cósmico”. Mas “O Menino e o Mundo”, animação brasileira atualmente em cartaz no Espaço Itaú de Cinema, no Rio de Janeiro, ultrapassa as fronteiras do cinema e é uma experiência sensorial completa.
A partir do sumiço do pai, um menino sai mundo afora. Percorre plantações de algodão, tribos indígenas, indústrias pesadas e infernos das grandes metrópoles. E enxerga das mais simples às mais complexas formas de exploração do trabalho e da degradação ambiental. Tudo isto é percebido pelo espectador através de um festival de imagens concretas, com a simplicidade do olhar infantil dos Dardenne; e abstratas, que mais parecem grafismos extraídos de pintores como Miró e Kandisky.
O menino e o mundo_01
O resultado é um espectador boquiaberto do início ao fim. Sim, os desenhos encantam a visão. Mas não é só isso. Os ouvidos entendem o vazio da ausência do pai e do mundo contemporâneo através do trabalho de som e música. O filme é de arrepiar e toma de assalto qualquer cego insistente usando trechos de “ABC da Greve” e “Ecologia” do (saudoso) Leon Hirszman. Mexe com os sentidos — leva à poesia de Fernando Pessoa.
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Helena Sroulevich

1 comentário

Arquivado em Filmaço!!!, Helena Sroulevich

Reavaliação da paternidade por meio do erro

Pais-e-Filhos-Poster

Que tipo e forma de consciência estaria escondida lá dentro? – no interior daquele crânio rígido como uma bigorna velha? Será que lá dentro não existia mais nada? Será que, tal qual uma casa abandonada, a mobília e os objetos foram transportados e não existia mais nenhum indício das pessoas que moravam lá? Mas, mesmo assim, as paredes e o teto deveriam conter algumas das lembranças e das cenas vividas. O vazio não consegue se apoderar tão facilmente das coisas cultivadas durante tanto tempo.” (1Q84 – Livro 3, de Haruki Murakami)

Pais e filhos

Os laços de sangue falam mais alto que os afetivos? Mesmo se decantarmos o componente humano do mero determinismo biológico, um embate entre darwinismo e lamarckismo, a interrogação de simples não tem nada. Partindo dessa questão, que além da dúvida guarda angústia, o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda, com extrema sensibilidade, trabalha, em “Pais e filhos”, a paternidade como instrumento de transformação de valores empedernidos na conservadora e ritualizada sociedade nipônica.

Duas crianças são trocadas na maternidade e criadas em lares que não podiam ser mais diferentes: um permissivo e desregrado, o outro intransigente e exigente. A troca é identificada pelo hospital e os pais enfrentam o dilema da escolha – fio narrativo análogo ao do essencial “O filho do outro” (2012), descontada a conotação política, de Lorraine Lévy. Ryota (Masaharu Fukuyama), arquiteto bem-sucedido com uma relação distanciada do filho de criação, encontra nos genes a resposta para a frustração de suas expectativas. Só uma desculpa que conta para si mesmo para justificar suas falhas como pai.

Kore-eda, num exercício de brilhantismo, desfia a questão-problema para questionar o instinto materno; estimular Ryota a rever suas atitudes como pai e como filho, forçando-o a encarar seus erros e se desvincular da herança paterna; incutir no arquiteto a filosofia de vida carpe diem de um comerciante, considerado um fracassado, e salvá-lo de si mesmo; e registrar o comportamento de duas crianças cuja ingenuidade é perturbada pela força de circunstâncias incompreensíveis – bênção da idade.

O único porém são as ações mecânicas e desprovidas de phatos de Ryota ao descobrir que o garoto que criou não é seu filho biológico, mesmo levando em conta a habitual frieza de suas relações com o rebento, a esposa e os pais – bem como alguma inexorabilidade no código de conduta e tradição japoneses. Seu suposto arrependimento numa virada não inusitada, mas desajeitada e pouco crível, torna mais precária a construção do arco dramático de seu personagem. Nada que comprometa este belíssimo filme acerca da sobreposição de razão e emoção numa situação que desafia resoluções cartesianas.

Nas sombras do coração há mais segredos do que a genética pode alcançar. Nelas, negativos da memória foram tatuados pela convivência/experiência, marcas que nem o amor de mãe pode apagar ou colocar sob suspeição, mas o afeto de pai pode reforçar.

Carlos Eduardo Bacellar

1 comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

Top 10: filmes

Aí vai minha lista com os 10 melhores filmes de 2013:

movie theather_drive in

Azul é a cor mais quente” (Abdellatif Kechiche) > crítica

A caça” (Thomas Vinterberg) > crítica

Dentro da casa” (François Ozon)

Depois de maio” (Olivier Assayas)

Django livre” (Quentin Tarantino) > crítica

O filho do outro” (Lorraine Lévy)

Gravidade” (Alfonso Cuarón)

O lugar onde tudo termina” (Derek Cianfrance)

Reality – a grande ilusão” (Matteo Garrone)

O som ao redor” (Kleber Mendonça Filho) > crítica

Lista auditada pelo Bacellar Cinema Research Institute.

Carlos Eduardo Bacellar

1 comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

A liberdade (não) é azul

azul e a cor mais quente

O amor é abstrato demais, e indiscernível. Ele depende de nós, de como nós o percebemos e vivemos. Se nós não existíssemos, ele não existiria. E nós somos tão inconstantes… Então o amor não pode não o ser também.” (Clémentine)

Se Adèle atribuísse uma cor à liberdade, ela seria azul. Mas seu daltonismo emocional revela que essa percepção é tão falsa quanto uma propaganda de absorvente. O amor que ela nutre por Emma, a mulher dos cabelos cor de oceano, que a draga pelo tesão, não corresponde às expectativas da moral conservadora. O resultado é uma negação do que sente; uma supressão de si. O martírio de Adèle é confundir desejo com vergonha num enclausuramento de silêncio velado pelo tabu.

Com as ambiguidades que cercam de inconstância essa paixão, o diretor tunisiano Abdellatif Kechiche moldou livremente para as telas as páginas da graphic novel Azul é a cor mais quente (editada aqui pela Martins Fontes), da francesa Julie Maroh, e transformou a HQ num pop-up audiovisual homônimo, permeado pela licença poética. As atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux foram escaladas para os papéis de Adèle e Emma, respectivamente – nos quadrinhos Adèle atende por Clémentine.

Uma história de amor homossexual condenada pelas convenções ortodoxas não tem nada de simples, principalmente quando envolve uma adolescente em processo de formação. Mas há algo além de um romance perturbado pelo preconceito e pela incompreensão.

azul e a cor mais quente_quadrinhos

Para Emma, sua sexualidade era um bem como outros. Um bem social e político. Para mim, é a coisa mais íntima que há”, declara Clémentine/Adèle numa passagem do texto de Maroh. A fronteira entre o público e o privado, para Adèle, se torna tão delimitada e imóvel – mas borrada pelas lágrimas de angústia – como a divisa entre o que deseja e o que pensa que deveria desejar. Emma, a Ramona Flowers que Adèle disputa com suas dúvidas, considera que a afirmação de sua opção sexual é algo a ser compartilhado e um veículo para a felicidade; uma identidade. Negação e aceitação. Polos opostos se atraem.

Adèle, num primeiro momento, em conflito, sem entender o que se passa dentro de si, tenta se enquadrar na moldura social estipulada para ela pelos outros – família, parcela careta da sociedade, amigos intransigentes. Procura se envolver com um dos gatos do colégio, pois acha que gostar de meninos é o certo – nada no amor é certo, só não amar é errado. Só que ninguém escolhe de quem vai gostar. A concepção de felicidade acaba se impondo, para o bem ou para o mal, pelas frestas que dilaceram um coração que se tolhe.

Num primeiro momento, Adèle desafia, inconscientemente, convenções castradoras: leva o carinha em que tentava se amarrar para a cama, finge um orgasmo, mete o pé na bunda do coitado, cai na balada em bares frequentados por gays – se descobre, se esconde. Envolvida com Emma, ela é assombrada pelas mesmas convenções conservadoras, entranhadas em sua constituição durante anos de lavagem cerebral – e confundida pela companheira com covardia. Adèle gosta de crianças, anseia em seu íntimo por um filho. Como, com Emma? E sua família, os amigos, os outros, o que vão pensar? Esconder por quanto tempo? Seu amor é realmente Emma? Sim, não… Esgarçada, Adèle se move com o corpo para um lado e o sentimento para outro. As cenas de entrega entre as duas deixam claro que a dissociação termina entre quatro paredes. Nada é mais certo do que aqueles momentos.

blue is the warmest color

A menstruação azul é uma forma de a publicidade conceituar um tabu e vender produtos preservando sensibilidades. Uma maneira de mascarar o real e não atingir suscetibilidades. Mas Emma não quer a mentira, ela quer a verdade: um “amor [que] se inflama, morre, se quebra, nos destroça, se reanima… nos reanima.” Um amor que a tinja de vermelho. A liberdade é vermelha. Sua maior conquista não foi se aceitar – “eu lutava tão obstinadamente contra mim mesma, contra os meus desejos, que não conseguia mais controlar o meu medo e a minha raiva, e por isso eu era tão agressiva”–, mas salvar Adèle de um mundo estabelecido sobre preconceitos e diretrizes morais absurdos.

azul e a cor mais quente III

A sensibilidade de Julie Maroh diz que a fórmula para o amor eterno é a mistura de paz e fogo. Diga isso para quem se ama, se consome, se inflama… E tem urgência do outro não para viver, mas para estar vivo.

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Fernanda Lima, com seu ousado modelito plastificada em folhas douradas no sorteio da Copa, me deixou pensando um monte de sacanagem… Aproveito a masturbação mental para destacar uma passagem do texto de Luiz Carlos Merten sobre o filme “Azul é a cor mais quente”, cujo título original é “La Vie d’Adèle Chapitres 1 et 2″… Lá pelas tantas, provocado por Merten numa coletiva qualquer – “o diretor é um voyeur e tem prazer filmando as mulheres. Não filmaria cenas dessa intensidade com dois homens” –, Abdellatif Kechiche diz que tem vontade de realizar uma continuação, cujo título seria “A Vida de Adèle 3 e 4”. O objetivo é mostrar sua predileção por orgias sem discriminação de gênero: “terá uma cena de sexo entre Adèle e dois homens, e será bem gráfica”. Alguém diga para o Kechiche tentar algo mais criativo… Esse filme já foi feito pelo Lars von Trier. No original, deve ter sido intitulado “A Vida de Gainsbourg 69 e 69”, ou algo do tipo. O que pegou foi “Ninfomaníaca”. Estreia por aqui em 2014. Fuck, yeah!

p.s. 2 A fixação oral do diretor, potencializada no cinema e muito comentada pela crítica, foi extraída da graphic novel de Julie. O desejo começa pela boca.

p.s.3 Ouça a trilha sonora de “Azul é a cor mais quente”.

azul e a cor mais quente II

3 Comentários

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

O som da ruína

O-Som-Ao-Redor

O som engolfa em seus ecos, que reverberam pelas estruturas afuniladas de condomínios de classe média em Recife. Arquitetura estéril, repetitiva e sufocante que mais lembra uma prisão ou manicômio. Dá no mesmo, aprisiona e perturba o olhar…

O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, transforma autoritarismo, conservadorismo, preconceito e hipocrisia, alicerces precários do status quo da classe média, no alçapão que a derruba em suas perversões e neuroses.

É na leitura crítica de comportamentos do cotidiano que a observação de gestos e atitudes aparentemente banais desvela a bipolarida daquela amostra social enfocada por Kleber – já utilizada como balão de ensaio nos curtas “Vinil verde” (2004), “Eletrodoméstica” (2005) e “Recife frio” (2009). A desagregação do tecido social fica evidente na montanha-russa que chacoalha núcleos de personagens numa viagem emocional entre euforia, frustração e medo da perda de privilégios frágeis.

o-som-ao-redor_cachoeira

Se o ventilador cair pela janela pode significar um tombo para uma classe inferior, talvez não segundo o Critério Brasil, mas certamente de acordo com critérios subjetivos dos medíocres, fermentados no individualismo e na inveja predatórios. Por isso ter uma televisão maior que a do vizinho pode ser motivo para um conflito fratricida. O acréscimo de R$ 300,00 na taxa de condomínio pode ensejar qualquer desculpa para mandar o porteiro embora por justa causa – mesmo que a peça acusatória seja baseada num vídeo captado por um tablet cujo diretor é um adolescente que não tem nada melhor para fazer e no fato de a revista chegar fora do plástico –, sendo desnecessário o pagamento do que é devido ao funcionário dedicado por anos de serviços prestados. Um cheque pode limpar a consciência, mas com certeza ela fica mais leve se esse valor puder ser convertido num bem de consumo durável para a família, mesmo após o fingimento de alguma preocupação com os direitos trabalhistas de um subalterno. Tudo decidido numa reunião de condomínio que mais parece um teatro do absurdo — espetáculo de constrangimento travestido de peça de defesa da probidade. Chantagem velada também pode economizar alguma grana. Por isso suicídio é usado como artifício de desvalorização de imóvel em uma negociação de compra, tudo por um desconto. E Kleber segue implacável: a mãe de família maconheira que se masturba na máquina de lavar, o playboy do condomínio que pratica furtos, o herdeiro que passa o dia fingindo que trabalha com a cabeça na garota com quem transou na noite anterior…

A classe média vive um paradoxo aflitivo: tem horror a pobre, na verdade pavor de um dia cair na pobreza, mas sonha integrar a elite da pirâmide sócio-econômica e se transformar num personagem da novela de Manoel Carlos, de modo a caminhar pela orla da Veneza brasileira – no caso das figuras recifenses de “O som ao redor” – assim como um ator global flana pelo Leblon até a confeitaria Kurt para se deliciar com um macaron de frutas vermelhas. Como se não houvesse amanhã.

o som ao redor_cama

O resultado disso é a alienação, uma ambiguidade moral de espectro amplo, um egoísmo exacerbado, aspirações que não vão além da próxima compra com o cartão de crédito. Para cuidar do manicômio prisional só mesmo uma milícia. Liderada por Clodoaldo (o superlativo Irandhir Santos), impõe seus serviços de segurança propagandeando o medo que se infiltra pelas fraturas psicológicas daquela comunidade. Ela é assombrada pelos fantasmas criados por suas ilusões falidas; esperanças frustradas. Não só… O medo é personificado nas pessoas da favela ao lado.

Dentro desse engenhoso mosaico de relações interpessoais, Kleber Mendonça Filho estabelece elos entre passado e presente. O diretor instiga uma reflexão dialética ao trazer para as estruturas verticais de aço e concreto do século XXI hierarquia, subordinação, dominação e respeito, características da dinâmica entre sujeitos no Brasil patriarcal, desdobradas num contexto hodierno patrimonialista. Aglomerados, os edifícios formam a selva da modernidade. Fauna incluída. Infelizmente, apesar da falência moral, a classe média não é uma espécie em extinção.

Carlos Eduardo Bacellar

1 comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

Clube dos três

Fonte: deviantart

Simplificação exagerada da narrativa, enxugamento do texto literário e o redimensionamento de situações da história dos personagens em detrimento do apequenamento (ou exclusão) de outras são estratégias utilizadas na transposição de livros para as telas. Tais artifícios vão de encontro às idiossincrasias hiperbólicas que nublam a adolescência com dúvidas, exageros, inseguranças, impulsividade, conflitos, medos e geram um custo emocional alto, mas necessário para a formação da personalidade.

As vantagens de ser invisível” consegue compatibilizar uma amostragem das infinitas contradições emocionais da adolescência – exploradas no romance homônimo – com as imposições comerciais da indústria ao empreender um expediente simples, mas eficaz: o escritor americano Stephen Chbosky foi incumbido de roteirizar e dirigir a versão de seu próprio livro para as telas. Controlando todo processo, o realizador, devoto de John Hughes, foi capaz de garantir a integridade de sua obra e se certificar de que a tradução, mesmo sendo um produto diferente do livro, carregasse a alma autoral impressa nas páginas.

Hughes foi o porta-voz dos questionamentos da juventude da década de 1980, com obras como “Clube dos cinco” (1985) e “Curtindo a vida adoidado” (1986). “The perks of being a wallflower”, no original, é a proposta de Chbosky para rediscutir de forma séria uma época conturbada, fugindo de comédias escrachadas como “Superbad” (2007) e do surrealismo da linguagem dos quadrinhos e videogames de “Scott Pilgrim contra o mundo” (2010) – aproximando sua filosofia estética de produções como “A lula e a baleia” (2005), de Noah Baumbach, e “Rocket Science” (2007), de Jeffrey Blitz.

Charlie (o talentoso Logan Lerman, o Michael Cera de Chbosky) está passando pelo desconforto do primeiro ano do ensino médio, um trote que se estende por todo calendário letivo, talvez além. O garoto é discriminado por não se enquadrar no modelo de comportamento considerado cool pelas tribos de it teenagers que dominam a área da escola. Se desvia como pode das farpas do bullying, rito de passagem pelos corredores para os diferentes. Não há nada pior para alguém que, influenciado pelas altas taxas hormonais, deveria pensar somente numa coisa: garotas, de preferência nuas.

Deveria, numa outra dimensão em que não existissem ambiguidades. Típico nerd, tímido, introspectivo, dedicado aos estudos e à literatura, sem traquejo com rituais sociais considerados ortodoxos, que lhe renderiam algumas amizades, Charlie é resgatado de sua misantropia pelos “irmãos” Patrick (Ezra Miller) e Sam (Emma Watson). Os dois apresentam outra realidade para Charlie, repleta de possibilidades. Não é difícil adivinhar que o Holden Caulfield do escritor/diretor se perde por Sam – moleza interpretar alguém apaixonado por Emma Watson; não é preciso ter talento ou frequentar o Actors Studio para convencer. O problema é que algo freia seu ímpeto de expressar o que sente.

Fonte: deviantart

Com o desenrolar da trama, o filme/texto de Chbosky mascara os esqueletos que os três guardam no armário com as inconstâncias e rompantes da idade. Questões como homossexualismo, o primeiro namoro, a primeira transa, as descobertas por meio de tentativa e erro, as escolhas precoces que podem determinar o futuro, a aflição das aplicações para as universidades, as atitudes irresponsáveis, as contradições sentimentais provocam reações que são confundidas com comportamentos que escondem traumas psicológicos mais sérios.

Flashbacks vão desvelando razões por trás das relutância de Charlie em se enturmar, arriscar, amar, ser adolescente. Seu único diálogo é com os livros, que estreitam sua relação com o professor de literatura inglesa, seu John Keating, interpretado por Paul Rudd. Estimulado, ele se entrega à escrita, único exercício de que gosta, solitário, na tentativa de desatar um nó em seu peito.

O sol é para todos, de Nelle Harper Lee, e On the road, de Jack Kerouac, não à toa integram a seleta de leituras obrigatórias. Mas a literatura só atinge toda sua grandiosidade quando diz algo sobre nós mesmos, e não quando é somente um mero instrumento de fuga ou passatempo vazio. Charlie se liberta por meio da coragem de Patrick e Sam para se desvencilhar de preconceitos e recalques que os impediam de crescer e assumir as rédeas de suas vidas.

Fonte: deviantart

A sensibilidade para tratar de temas considerados tabus se mescla e se confunde com a instabilidade psicológica e emocional de um período complicado. Aí está o excepcional… “The perks of being a wallflower” questiona valores rotulando metaforicamente problemas com os “defeitos morais” da adolescência. O “desvio” para falar do “desvio”, estabelecendo causas e consequências distintas. Chbosky pede que sua juventude seja ouvida para além de estereótipos e das condutas imputadas à idade. E ela grita alto. É só filtrar os ruídos.

Senhoras e senhores, sou o Carlos Eduardo Bacellar e posso dizer que sobrevivi à adolescência quase incólume… Acho… Mas continuo por aqui, tentando me entender; saber quem sou e para onde vou. Qualquer lugar com Emma Watson estaria perfeito.

p.s. Há imagens muito bacanas no tumblr do filme.

Fonte: “The perks of being a wallflower”, por Joel Amat Güell

 

1 comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

Wes Anderson e Todd Solondz: duas faces da mesma moeda

Fonte:deviantart

Não sou jovem o suficiente para saber tudo” (Oscar Wilde)

Numa disputa de cara ou coroa entre Wes Anderson e Todd Solondz, jogando para o alto a moeda de Harvey Dent/Duas Caras, instrumento/juiz que entrega à probabilidade questões relativas à família, Anderson sempre vai escolher o lado imaculado, enquanto Solondz, seu duplo degenerado, vai escolher a face arranhada.

O diretor de “Felicidade” (1998), cronista das perturbações dissimuladas da classe média americana, enxerga a família ianque, cujo hábitat natural são os subúrbios – retratados em suas produções como verdadeiros depósitos de traumas psicológicos, conflitos e perversões escamoteadas, maquiados pela fragilidade das aparências e da hipocrisia –, com pessimismo e desesperança.

Já Anderson, mesmo reconhecendo as disfuncionalidades inerentes a um núcleo familiar, aproveita essas mesmas anomalias para estreitar laços entre personalidades conflitantes e criar narrativas singelas e lúdicas acerca do amadurecimento emocional de pessoas ligadas pelo sangue. As ovelhas negras em suas obras, figuras de destruição/reconstrução, são sempre transformadas em velocinos de ouro pela condescendência do olhar delicado.

Em “Os excêntricos Tenenbaums” (2001), a doença terminal do patriarca, um advogado falido interpretado por Gene Hackman, é o remédio produzido pela necessidade para cicatrizar desavenças, rancores, incompreensões e corações partidos. “A vida marinha com Steve Zissou” (2004), com Bill Murray no traje de mergulho de uma paródia de Jacques Cousteau, é um ensaio de Anderson sobre a paternidade tardia e seus efeitos colaterias, desvirtuados pela dor da perda e a sede de vingança, como a tentativa de recuperar o tempo perdido e ao mesmo tempo lidar com um sentimento novo e incômodo: o afeto por um filho cujo parentesco não resistiria a um exame de DNA. “Viagem a Darjeeling” (2007) trata da jornada espiritual de três irmãos. Viajando pela índia a bordo de um trem, são obrigados a aproveitar o tempo juntos para se harmonizarem e discutirem o relacionamento que tiveram com o pai falecido e a mãe que os abandonou. Cheirando a incenso, é o “Nós e eu” (Michel Gondry, 2012) da era analógica para maiores de 18 anos de Anderson.

Solondz formula seus trabalhos com ironia, sarcasmo, violência psicológica, individualismo e senso de humor doentio. Anderson manuseia transparência de sentimentos, inocência, pureza, ingenuidade e solidariedade.

A trilha autoral construída com os negativos do realizador de “A vida durante a guerra” (2009) e “Dark Horse” (2011) nunca foi um caminho viável para Anderson. Ele optou pela via positiva que o levou até “Moonrise Kingdom”, seu último longa, produção que rivaliza com a animação “O Fantástico Senhor Raposo” (2009) – sobre, adivinhe?, uma família de canídeos que se encrenca porque o papai raposo não consegue negar sua verdadeira natureza – pelo posto de melhor projeto do portfólio de Anderson.

Ah, o primeiro amor… A história de dois pré-adolescentes que descobrem (e vivem) intensamente o amor é adaptada na matriz familiar do maior fã de Bill Murray de que se tem notícia – Ruben Fleischer deve estar se mordendo todo e se autoinfectando com o vírus da inveja, aproveitando o trocadilho canibal para fazer referência a “Zumbilândia” (2009). O escoteiro Sam (Jared Gilman) tem um missão ordenada por seus hormônios. Ele abandona sua tropa, acampada em algum local na nova Inglaterra, década de 1960, para fugir com sua amada Suzy (Kara Hayward). Os pais da moça, Walt (Bill murray) e Lara (Frances McDormand) Bishop, não aceitam muito bem o relacionamento. Junto com o líder escoteiro da tropa de Sam, Ward (Edward Norton), seus asseclas mirins e o capitão da polícia local, Sharp (Bruce Willis), empreendem uma operação de busca e salvamento da virgindade perdida. Sam é o Charlie, sobrenome “As vantagens de ser invisível”, da família adotiva que o rejeita. Esperto, pragmático, aplicado, introspectivo, retraído, solitário, tachado como esquisito por causa de seu comportamento singular. Suzy é a Dawn Wiener do clã Bishop. Introvertida, leitora voraz, tímida, sonhadora, voluntariosa, explosiva, incompreendida. Almas gêmeas.

Fonte:deviantart

Wes Anderson e seu conceito estético vintage, influência dos anos 1960 – como se tivesse dado caixas de lápis de cor para crianças pintarem os cenários de “Mad Men”, os quais serviriam como locações para seus filmes –, emolduram, com imposições sociais (as incongruências e distúrbios da família), uma história sobre o florescimento do amor em seu estado mais inocente, repleto de dúvidas, descobertas e expectativas – portanto, mais intenso e inabalável. A primeira paixão, o primeiro entrelaçamento de mãos, o primeiro beijo, a primeira apertada de peitinho, a primeira ereção… Anderson torna o constrangimento e o desconforto encantadores e poéticos.

Os personagens caricaturais, a ambientação que tangencia o irreal, as situações inverossímeis, o olhar infantilizado, os silêncios que maturam as ações, as tomadas em câmera lenta, os exageros habituais das histórias em quadrinhos são elementos da grife Anderson, que assina o roteiro com Roman Coppola. Tudo fotografado por Robert D. Yeoman, colega de trabalhos anteriores que, ou por uma falha no tratamento do filme (segundo o IMDb, o formato original do negativo era 16mm; posteriormente foi convertido para 35mm), ou por opção, confere à projeção um aspecto granulado, escurecido e de pouca definição, característico do formato Super-8 – proporcionando uma atmosfera cult. O diretor faz do cinema sua caixa de brinquedos, com a qual volta no tempo e realiza suas fantasias mais íntimas. Seu jogo LEGO de US$ 16 milhões.

Moonrise Kingdom” é a versão cor-de-rosa de Wes Anderson para “Bem-vindo à casa de bonecas” (1995), em que, diferentemente da ficção desencatadora de Solondz, sobre o lado odioso da natureza humana, os melhores sentimentos prevalecem.

 Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Anderson é extremamente conservador na escolha do elenco. Apostar em Bill Murray e Anjelica Huston é sempre recompensador. Os irmãos Owen e Luke Wilson e Jason Schwartzman também são figurinhas fáceis em seus filmes. Felizmente, desta vez ele abriu espaço para Frances McDormand, Bruce Willis e Edward Norton. Os dois últimos brilham, especialmente Norton, um líder que ainda está aprendendo o significado de liderança. McDormand desempenha um papel inexpressivo – que ramifica a trama num envolvimento extraconjugal para afirmar mais uma vez os problemas que solapam as relações familiares nas obras de Anderson –, assim como Tilda Swinton, numa ponta como assistente social.

p.s.2 Muitos críticos se rasgam de elogios para a trilha sonora dos filmes de Anderson, no meu entendimento superestimada. Manohla Dargis, crítica do Times, destaca em sua resenha O Guia da Orquestra para Jovens, obra do compositor inglês Benjamim Britten, que disseca os naipes de uma orquestra durante os créditos de “Moonrise Kingdom”. Quem assina a trilha é Alexandre Desplat, mito da indústria. Para eles, só digo dois nomes para encerrar o assunto: Cameron Crowe e Nancy Wilson. Segurem essa!

Fonte:deviantart

 

2 Comentários

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!

Célula-tronco da amizade

Esta história é baseada em fatos irreais.

Eventos traumáticos podem dissociar o corpo da mente. No acidente de parapente que o deixou paralisado do pescoço para baixo, Philippe (François Cluzet) tentou se agarrar aos seus pensamentos no momento da queda, mas eles teimaram em ficar flanando lá no alto, enquanto o milionário francês era apresentado à Lei da Gravidade e às limitações da ortopedia numa aula prática.

Visto de cima, caindo em queda livre, seu corpo, diminuindo a cada segundo, tornava-se uma metáfora do estado de espírito de alguém numa carcaça danificada, impossibilitada de realizar.

Só que o conceito de realizar é relativo. Philippe encontrou formas de se expressar que prescindiam dos movimentos que, para pessoas sem deficiência, são tão naturais como respirar.

Porém, chega um momento em que a ação é necessária – pois sem ela a vida não tem movimento, e um tetraplégico sempre estaria no último local em que foi deixado –, e Philippe precisa das mãos e dos pés que lhe foram tirados para satisfazer desde necessidades prosaicas, como se alimentar, fazer a barba e tomar banho, até vontades mais complexas, como cortejar uma mulher.

O problema para Philippe é que os membros vêm acompanhados do componente humano, e um tetraplégico sempre instiga a compaixão, último sentimento que o aristocrata deseja aflorar em quem o acompanha praticamente 24h por dia.

A escolha de uma nova “babá” é um trabalho frustrante até aparecer Driss (Omar Sy), um imigrante senegalês que rompe com o protocolo da análise de currículo durante uma entrevista para o emprego. Na verdade ele não tem um currículo. Driss se qualificou no manual de sobrevivência da vida. Sua malandragem o faz gingar pelas brechas da lei.

Intocáveis”, dos diretores-roteiristas Olivier Nakache e Eric Toledano, consegue, com uma química inteligente, misturar água com óleo ao explorar um relacionamento aparentemente impossível, que evolui para uma amizade inusitada.

Pertencente a outro estrato social, Driss não tem nenhuma condescendência com seu chefe abonado. O trata por brother, em vez de Vossa Excelência. O politicamente correto é deixado de lado. Philippe é apenas uma chateção no começo, um meio para um fim, não uma cumbuca onde pode derramar lágrimas de pena; um boneco de carne, não um objeto de cristal. Era tudo que o cadeirante desejava: uma interação entre iguais, que permita a complementaridade em vez da desigualdade, muito pesada para um lado só suportar.

Omar Sy surpreende ao explorar com competência e segurança o perfil de seu personagem arquitetado pelo roteiro. Construção primorosa, situações criativas, diálogos inteligentes, trocas precisas entre os personagens, humor woody-alleniano (autodepreciativo), rompimento de tabus, andamento atraente… A narrativa envolvente desta produção francesa oblitera o fato de que Philippe é um tetraplégico. Temos somente dois caras curtindo juntos. Nem as sugestões políticas sobre a questão da imigração na Europa e as discussões acerca da criação dos filhos, apêndices da linha mestra, perturbam a harmonia do filme — obrigatório para quem for ao cinema neste fim de semana. “Intocáveis” se esquiva tanto do drama barato e da pieguice, de um lado, como da história edificante e virtuosa, do outro.

Mesmo se Philippe possuísse as habilidades telepáticas do Professor Charles Xavier, vulgo Professor X, a sintonia não seria tão fina com Driss. Na escala que vai da depressão à felicidade, que tem como marco zero a desistência de “Mar adentro” (2004) e a opção pela eutanásia, passando pelas possibilidades inortodoxas de “O escafandro e a borboleta” (2007) que conferem sentido ao existir, chegando ao aproveitamento pleno de “Perfume de mulher” (1992), Driss consegue empurrar a cadeira de rodas de Philippe além, até a euforia hedonística de “Hasta la vista” (2011). Nem a neurociência de Miguel Nicoelis faria melhor.

Driss não deixou Philippe perder suas ideias de vista, aquelas que ficaram lá em cima no momento do acidente. Agora, com sua normalidade recuperada, ele olha para cima, e de sua cadeira de rodas enxerga um gigante familiar. Funcionando como uma pipa, atrelados ao seu hot wheels edição limitada com assinatura de Stephen Hawking, os pensamentos de Philippe não conhecem limitações e o impulsionam para cada vez mais perto de si mesmo. Eventos traumáticos podem dissociar o corpo da mente… Ou aproximá-los ainda mais. É na interseção entre matéria e imaginação que a existência é mais intensa.

Carlos Eduardo Bacellar

1 comentário

Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Filmaço!!!