Arquivo do mês: janeiro 2013

Cola para Lincoln

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Neste mundo atribulado, em que o trabalho nunca nos deixa e onde o Twitter, termômetro midiático, dá a reação aos últimos acontecimentos (não raro enquanto eles ainda se desenrolam) antes mesmo de a notícia “institucionalizada” chegar, queremos tudo bem resumido, bem mastigado. Queremos a cola da prova que vai nos dizer como vai ser o dia de amanhã. E nessa correria toda, pouco tempo sobra para pensar no passado.

Que relevância tem então um filme sobre um presidente americano, morto faz 147 anos? Um filme que, ao contrário de um “Apocalypse Now” (Francis Ford Coppola, 1979) ou “Platoon” (Oliver Stone, 1986), foca nos mínimos detalhes de uma batalha legislativa e não nos campos de batalha de verdade, da Guerra Civil Americana (1861-1865)? Um filme que ao contrário de “E O Vento Levou” (dirigido por Victor Fleming juntamente com mais dois realizadores não creditados, George Cukor e Sam Wood, 1939), não nos dá um romance arrebatador no centro da trama, mas apenas alguns relances de um amor muito mais complicado?

Em um análise de crítico de cinema, o “Lincoln” de Steven Spielberg parece se encaixar em uma leva de filmes de uma Hollywood que parece estar amadurecendo e trazendo uma visão de mundo menos ingênua também. Desde o “The Hurt Locker” (2008) e o “Zero Dark Thirty” – a hora mais escura para Osama bin Laden, ainda por estrear no Brasil –, da Kathryn Bigelow, passando pelo “Argo” (2012), do Ben Affleck, e talvez até incluindo o “Avatar” (2009), de James Cameron, um sociólogo poderia dizer que são expressões do povo americano digerindo e tentando entender as guerras desta virada de século. Tentando achar um tempinho pra refletir sobre o passado e tirar lições para o futuro, descontadas as distorções e os exageros ufanistas.

Que lições traz o “Lincoln” de Spielberg e o Lincoln de verdade pra nós brasileiros? Desculpe, mas aqui você não vai achar a cola. Seria simples dizer que esse talvez seja o melhor filme do Spielberg desde “Minority Report” (2002), “O resgate do soldado Ryan” (1998) ou a “A Lista de Schindler” (1993) – aquele que for seu preferido. E há argumentos para afirmar isso. E seria simples dizer que o Lincoln de verdade é ídolo de personalidades tão distintas quanto Marx e Trotsky, Walt Whitman e Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Jawaharlal Nehru, George W. Bush e Barack Obama. Tudo verdade.

Mas o que mais importa é dizer: Vai lá, do teu jeito, vale a pena conhecer o Lincoln. Não vai ser fácil, não vai ser tudo mastigadinho não. Mas eu aposto que você vai achar um amigo que, do passado, no presente e para o futuro tem muito a nos dizer.

Para saber mais sobre Abraham Lincoln

Livros:

Team of Rivals, biografia de Lincoln de Doris Kearns Goodwin, livro que inspirou o filme – traz muito mais detalhes da vida pessoal, da política e da equipe política de brilhantes, mas contenciosos rivais, que Lincoln criou e gerenciou durante seu governo.

A versão em português da biografia de Lincoln é uma versão resumida do livro original. Acaba de chegar às livrarias pela Record. Segundo a Folha, as 944 páginas da edição em inglês, no trabalho de edição, passaram para 320. A editora diz que a versão foi feita pela autora.

Battle Cry of Freedom, do historiador James McPherson é um clássico e até hoje serve como padrão, o melhor livro que em um volume resume a Guerra Civil Americana e a influência do Lincoln.

Lincoln’s Sword, de Douglas Wilson, foca no poder das palavras do ex-presidente, mais eficientes que a “espada” do título do livro.

Lincoln, de Herbert Donald Howard, é a outra biografia clássica de Lincoln.

The Lincolns: Portrait of a Marriage, de Daniel Mark Epstein, foca na vida pessoal de Lincoln e, particularmente, na sua conturbada relação com a esposa Mary, que alguns hoje diriam ser bipolar; e corrupta, desviando dinheiro dos jardineiros da Casa Branca para pagar por suas extravagantes compras em Nova Iorque e Filadélfia (Philadelphia para os conservadores). Por outro lado, o amor de Mary e do presidente Lincoln por seus filhos também fica muito claro.

Finalmente, se você gostou de alguns dos coadjuvantes do filme, vale a pena investigar a vida de verdade deles. Aqui algumas sugestões: Seward, Lincoln’s Indispensable Man, de Walter Stahr; Giants, the Parallel Lives of Frederick Douglass and Abraham Lincoln, de John Stauffer; The Man Who Saved the Union, Ulysses Grant in War and Peace, de H. W. Brands.

Filmes:

O filme “Young Mr. Lincoln” (1939) é outro clássico do cinema, de um jovem diretor John Ford e com Henry Fonda no papel principal. Infelizmente, ele geralmente é esquecido por ter sido lançado em 1939, “Ano de Ouro” de Hollywood. Foi obrigado a disputar atenção com clássicos de ainda maior impacto, como “Gone with the wind”, “Mr. Smith Goes to Washington” (Frank Capra), “The Wizard of Oz” (de Victor Fleming em codireção com os apócrifos George Cukor, Mervyn LeRoy, Norman Taurog e King Vidor), “Stagecoach” (do próprio John Ford), “Wuthering Heights” (William Wyler), “Goodbye Mr. Chips” (Sam Wood e o negligenciado Sidney Franklin), “Ninotchka” (Ernst Lubitsch) e “Of Mice and Men” (Lewis Milestone).

Abe Lincoln in Illinois” (John Cromwell, 1940) consolidou a imagem do Lincoln para a geração que lutou a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, o presidente demorou a voltar às telonas. Gore Vidal escreveu uma peça sobre Lincoln que acabou virando uma minissérie de TV em 1988, com Sam Waterston e Mary Tyler Moore nos papéis principais. Finalmente, Robert Redford, em 2010, dirigiu “The Conspirator”, sobre um dos possíveis envolvidos no assassinato do ex-presidente.

Viagens:

Em Washington, D. C., não deixe de visitar o Lincoln Memorial, monumento em homenagem ao ex-presidente, com sua famosa estátua sentada em uma poltrona e seus dizeres em volta; e o recentemente reformado Ford Theatre, hoje museu, onde o presidente foi assassinado.

E a três horas de carro de Chicago ou duas horas de St. Louis, vale a pena conhecer a até hoje ainda pacata Springfield, Illinois, capital do estado onde Lincoln viveu grande parte de sua vida, fez carreira de advogado, se casou, teve filhos e ingressou na política. A casa onde o Lincoln morava faz parte de um bairro histórico bem preservado e a Abraham Lincoln Presidential Library não só é uma biblioteca, mas, sim, um museu muito bem bolado, com algumas exibições no patamar de Disney.

Spencer Finch — Correspondente do @doidoscine na Filadélfia, pai do Lucas, leitor voraz, amante de cinema e primo de @cebacellar

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Peso da dor

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A racionalidade, condicionada a restrições morais, é a cortina de falsidades que escamoteia o teatro grotesco do instinto. O diretor teuto-austríaco Michael Haneke faz de seu cinema ferramenta de exploração dos impulsos mais abjetos do humano. O olhar desmedido, frio, por vezes cruel de Haneke, um voyeur psicopata, desvelou perversões em “A professora de piano” (2001), o envenenamento das ideias pela xenofobia em “Caché” (2005), a barbárie infundada em “Violência gratuita” (2007) e a gênese do mal que corroeu a Europa na primeira metade do século XX com uma alegoria sobre a incubação do nazismo em “A fita branca” (2009) – filme com o qual ganhou sua primeira Palma de Ouro em Cannes. A estética de Haneke conjuga suspense com tortura física e psicológica e explosões de violência. Situações aparentemente banais são sombreadas pela suspeita de uma tragédia, que parece estar sempre à espreita.

Amor”, filme que rendeu a Haneke sua segunda Palma de Ouro, apresenta uma proposta mais doentia. Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva, perfeita como um Dom Lázaro de saias), ex-professores de música, formam um casal octagenário que frui seus dias com a tranquilidade e despreocupação que a idade permite.

Uma suposta cirurgia para desobstrução da carótida, sinalizada por sintomas semelhantes aos de uma doença degenerativa, escarnece das probabilidades e corre mal. Anne sofre um derrame e seus efeitos nefastos começam a transformá-la gradativamente num vegetal. Georges e a família perdem o chão. A primeira atitude é um positivismo comedido da parte de Georges, que o obriga a uma adaptação cautelosa. Hábitos antigos são difíceis de serem alterados, e a cumplicidade com a esposa fica comprometida. As emoções agora precisam ser estudadas. A filha do casal, Eva (Isabelle Huppert), desmorona num surto de infelicidade, pena e incômodo. Para ela, há um problema que, se não pode ser resolvido, deve ser defenestrado com carinho. O que os olhos não veem, o coração não sente.

A decadência física e psicológica de Anne, mais do que indicar a proximidade da morte, transfere sua subjetividade para o outro. Ela não pensa mais, é pensada. Deixa de ser ativa e se torna passiva. Com essa inversão, o roteiro de Michael Haneke deturpa o amor que existe entre eles e confere a Georges responsabilidade e poder de decisão totais, sem haver necessidade de responder a ninguém por seus atos. Os instintos mais primitivos se confundem com querer bem, numa reflexão moral ambígua de certo e errado, poder e não poder, vida e morte.

Tristeza, impotência, indignação, asco, revolta, repúdio, aviltamento, frustração, desesperança… Choque! Alívio… Haneke expurga o amor de sua carga negativa filmando um homem dividido, mas que deseja escrever com suas palavras o necrológio do próprio sentimento, contaminado pelo hediondo. Equivoca-se ao pensar que se dedica à melhor narrativa para a esposa. Há justificativa, não há justificativa. Haneke é seco como seu protagonista. Georges não chora. Arrasta, impassível, o fardo de seu comportamento, seu pecado e sua salvação. Anne, meu bem, meu mal. Até a eternidade. Lágrimas cabem no espaço de um olho, mas pesam toneladas.

Carlos Eduardo Bacellar

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Na carne e na alma

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Além das montanhas”, do controverso diretor romeno Cristian Mungiu, explicita no título seu ceticismo, traduzido na dificuldade em distinguir a loucura pela religião da loucura religiosa. A impossibilidade do conhecimento absoluto agrega à religião o componente da interpretação. Dependendo de quem lê, a exegese das escrituras pode se desdobrar nas mais belas ações ou nos mais hediondos atos.

A harmonia de um convento na Romênia é perturbada pela chegada de Alina (Cristina Flutur, soberba). A jovem vai colocar à prova a fé de Voichita (a anestesiada Cosmina Stratan, de inexpressividade autista semelhante à de Fukaeri de Haruki Murakami em 1Q84 – Livro 1), a inseparável amiga de outrora, companheira de orfanato em tempos de mais violações de preceitos religiosos e menos espiritualidade. O desejo de Alina é retirar Voichita do convento e levá-la para a Alemanha, onde reside. Convencê-la a desistir de seu votos não será tarefa fácil na medida em que o relacionamento entre as duas ultrapassa os limites impostos pelo cristianismo ortodoxo.

A obsessão de Alina pela amiga se torna doentia, e é confundida pelos membros da comunidade, liderada pelo personagem de Valeriu Andriuta, com possessão demoníaca. Novamente Mungiu coloca seu dedo sobre uma ferida infeccionada chamada tabu. Em “4 meses, 3 semanas e 2 dias” (2007), filme com o qual ganhou a Palma de Ouro em Cannes, escancarou a questão do aborto.

Além das montanhas” provoca questionamentos acerca do fervor religioso ao colocá-lo sob outro parâmetro, ou parâmetros; deformando-o com filtros de interesses e expectativas. Voichita abstrai os imperativos do desejo por meio da imersão na ascese ao mesmo tempo que se digladia com sua humanidade, fraturada pelo novo tipo de relação com a amiga – que quer bem, mas a distância. O padre e as freiras são esgarçados entre a fraternidade, a dúvida e o sentimento de repulsa a um envolvimento que consideram impuro (uma desculpa para aliviar a consciência em prol da manutenção da doutrina). Alina, em seu egoísmo exacerbado, engendra artifícios psicológicos, armas de chantagem emocional, que a obrigam a transitar entre crença, incredulidade e descontrole irracional. Atuando na construção de um estado emocional apócrifo, ela comunga e blasfema, numa bipolaridade inerentemente contraditória para satisfazer seus interesses. Alina é pecado e virtude, perdição e salvação, anjo e demônio. Alina é todos nós.

Carlos Eduardo Bacellar

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Revisionismo histórico estimula revanchismo catártico da consciência coletiva

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A vingança é o agente anticoagulante que potencializa a estética hemorrágica do diretor Quentin Tarantino. Com “Bastardos inglórios” (2009), Tarantino abriu as feridas da História para expurgá-la de seus horrores propondo um revisionismo dos fatos como forma de estimular o revanchismo catártico da consciência coletiva. “Sacanas sem lei” – o genial título do filme em Portugal – é uma obra audiovisual politicamente (in)correta da História Mundial, que, por meio da paródia, deturpa tudo que aprendemos nos livros didáticos. A correção na ficção dos tropeços da humanidade torna a disciplina, ensinada à Leandro Narloch, muito mais interessante. O alvo (ou vítimas) de Aldo Raine, o Apache, e seu grupo de açougueiros treinados em técnicas militares eram os nazistas.

Django livre” volta os olhos injetados de sangue criativo do realizador de “Cães de aluguel” (1992) para a escravidão em solo americano no período pré-Guerra de Secessão (1861-1865), conflito que colidiu os Estados Confederados do Sul – latifundiário, aristocrata e pró-escravidão –, que entraram numa de se separar da União, com o Norte industrializado, avesso à dinâmica desumana entre a casa-grande e a senzala e cujo lema era unidos venceremos. O título do filme faz alusão ao “Django” (1966) de Sergio Corbucci, em que Franco Nero, que faz uma ponta na versão tarantinesca abolicionista, interpreta o pistoleiro misterioso que carrega um caixão-paiol onde repousa uma metralhadora Gatling pronta para aerar carne humana. Apesar disso, não deixa de ser uma homenagem ao primeiro diretor que vem à cabeça quando pensamos no rótulo spaghetti western, de quem Tarantino é fã: Sergio Leone.

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O Django (Jamie Foxx, apostando no mesmo tipo metidão de sempre, um rapper invocado de esporas e pistolas, tentativa de emular a atitude cool, distanciada, debochada e paródica do pistoleiro sem nome interpretado por Clint Eastwood na trilogia dos dólares de Leone) de Tarantino é um escravo que arrasta grilhões no traslado para ser comercializado no atacado. A alta do mercado de corpos faz com que seu caminho cruze com o do doutor King Schultz (Christoph Waltz brilhante, mesmo evitando sair da zona de conforto ao decalcar sua atuação da que empreendeu em “Bastardos…”, filme em que interpretou o coronel poliglota nazista Hans Landa), um ex-dentista que mudou de ramo pela força das circunstâncias e agora trabalha como caçador de recompensas. As extrações continuam, só que agora de vidas.

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Django, auxiliado pela providência, troca sua alforria por informação. Os dois unem forças para ganhar alguns dólares adubando o solo com cadáveres de procurados pela justiça. O novo colecionador de cartazes wanted dead or alive aprende rápido a derramar sangue sem macular seus pudores. Em troca do auxílio de Django Freeman, sobrenome que ironicamente expressa a nova condição social do ex-escravo, Schultz se compromete a dividir um quinhão de seus lucros e a ajudar o novo amigo a resgatar sua amada Brunhilde (Kerry Washington, a Sheron Menezzes do Bronx) do tronco. Django e Brunhilde sofreram penalidades draconianas por tentarem escapar do antigo dono. Foram separados e tiveram os corações despedaçados a chibatadas.

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Na realidade, resgatar não seria o melhor verbo, já que Brunhilde é propriedade do latifundiário Calvin Candie (Leo DiCaprio, psicopata no papel de um vilão de trejeitos circenses arrotando francofilia), um dos precursores do MMA nos EUA do século XIX. Django e Schultz precisam negociar Brunhilde como mercadoria, sem despertar as suspeitas de Candie para algo além de uma simples transação. O problema é que, em suas fileiras de lacaios, Candie conta com a astúcia e a experiência do velho negro Stephen (Samuel L. Jackson, soberbo no papel do corvo de mau agouro que desconfia até da própria sombra e deseja se refestelar em carniça).

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Macarronada à Tarantino de US$ 100 milhões

O força do filme está no que Tarantino, em quem a palavra predomina sobre a imagem, tem a oferecer de melhor. Anote aí a receita da macarronada à Tarantino:

Subversão das convenções;

inversão do binômio causa e efeito, quebrando a cronologia da narrativa;

diálogos digressivos e extensos, que suspendem a ação e sublinham a falta de lógica da interação, funcionando como jogos retóricos que dificultam a apreensão do real objetivo dos personagens – as longas conversas prolongam os momentos prévios e posteriores aos atos de violência em si, o que aumenta a expectativa de quem assiste;

cenas prosaicas que comportam o absurdo;

momentos de reverência ao cinema exploitation americano da década de 1970, no caso de “Django livre”, blaxploitation, e ao cinema de horror italiano das décadas de 1970-1980 (capitaneado por Dario Argento, mestre do subgênero giallo), que lançam, junto com a crueldade mórbida, um olhar irônico sobre as sequências de glóbulos vermelhos em profusão;

utilização de flashbacks na construção narrativa, mas infensos ao cinema clássico, em que remetem à subjetividade do personagem (rompem com a linearidade respeitando a causalidade por meio do ato de lembrar): em “Django livre”, em um estratagema semelhante, mas não tão radical como na montagem labiríntica de “Cães de aluguel” – filme no qual os flashbacks são apresentados como segmentos sem aparente relação causal, (des)organizados com o objetivo de impedir que o espectador reordene os eventos em sequência cronológica enquanto assiste –, há a interferência lúdica de um narrador que manipula a trama ao retornar no tempo;

fotografia hiper-realista (herança da estética de Sam Peckinpah), clicada por Robert Richardson, que explora ao máximo situações de agressão e choque;

paródia com que trata o spaghetti western e o tema tabu da escravidão;

humor negro;

trilha sonora magistral, que aproveita nos créditos de abertura a música tema do filme original, composta pelo argentino Luis Bacalov, além de contar com a contribuição do mitológico compositor italiano Ennio Morricone, cuja biografia – atrelada a parceiras antológicas com Sergio Leone – se mescla com o conceito do subgênero spaghetti western, em quatro faixas: The braying mule, Sister Sara’s theme, Ancora qui (em coautoria com a cantora e compositora italiana Elisa Toffoli) e Un monumento;

pólvora a gosto.

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O roteiro de “Django livre”, assinado pelo próprio Tarantino, subverte o protocolo da ideologia escravista como forma de cuspir na cara do preconceito e arreliar valores morais viciados. Django, após ser libertado, rapidamente assume o papel de liderança e contraria o pensamento atrofiado, passando de figurante a protagonista. Schultz, eclipsado pelo ímpeto do companheiro, entuba sua nova condição de wingman. Algo semelhante ocorre nos domínios de Candie, que passa por idiota quando Stephen desvela a verdadeira intenção dos inusitados convidados do patrão e demonstra que é muito mais que um simples escravo responsável por gerenciar a casa-grande. Ele é o cérebro de um sistema que perpetua a ideologia da dominação, invertida para o espectador no jogo cênico de Tarantino. De quebra, o diretor ainda brinca com os especialistas ao embaralhar as categorias empedernidas do Oscar.

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Os únicos poréns são as encheções de linguiça – desnecessárias, prolongam a duração do filme, que contabiliza 165 minutos, com poucas viradas, e encurtam nossa paciência – e alguns personagens que, apresentados, não se realizam, meras distrações. Nada no cinema de Tarantino até então foi mal resolvido, mas, neste filme, um roteiro cheio de gorduras passa essa impressão. É complicado afirmar isso, pois Tarantino é doutor em cinema.

Campeão mundial das teses: novo defloramento sem necessidade de reconstituição cirúrgica do hímen e homossexualismo subjacente ao roteiro

Primeira tese tarantinesca: Like a virgin, da Madonna > “A história de uma mulher rodada, que já tinha dado muito, e acontece o quê? Um dia ela encontra um cara com a piroca enorme que faz ela sentir a pressão de quando era virgem.”

Segunda tese tarantinesca: “Top gun” (1986) > “Lembra desse filme? Filme de viado, moscão, varejeira, por quê? O Tom Cruise e o Iceman [Val Kilmer] passam o filme inteiro suado, sujinho de areia, jogando vôlei e trocando olhares em câmera lenta e decidindo quem é que vai na traseira de quem.”

Roteiros seriam fragmentos de um épico

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Fonte:weheartit.com

Se a tendência for mantida, qual será a próxima correção histórica que Tarantino irá nos propor? O obrigatório curta “Tarantino’s mind”(2006), da produtora 300ml, de cujo roteiro extraímos as teses tarantinescas supracitadas — a segunda uma reflexão acerca da homossexualidade latente em “Top gun” que Tarantino explicita numa ponta como ator na produção “Vem dormir comigo” (2004), de Rory Kelly –, gaba-se de ter decifrado o código criado pelo diretor de “Pulp fiction” (1994). Na lógica do curta, protagonizado por Selton Mello e Seu Jorge, todos os roteiros de Tarantino são na verdade um só filme épico, dividido em várias partes – com exceção de “Jackie Brown”, adaptação de Rum Punch, romance do escritor americano Elmore Leonard. Só é preciso juntar as peças do quebra-cabeça.

Kill cowboy!

Que tal um exercício de imaginação? Aldo Raine, o Apache, escalpelador de nazistas… Django, um John Wayne com excesso de melanina e desvantagem vertical de 15cm em relação ao Duke… Se um filme envolvendo a releitura das iniquidades impingidas à cultura indígena dos EUA estiver nos planos do realizador de “À prova de morte” (2007), um “Rastros de ódio” (1956) ao avesso, tarantiniano, conferindo novas conotações ao termo peles vermelhas, John Ford e Howard Hawks devem estar golpeando a tampa de seus caixões como a Noiva enterrada viva de “Kill Bill: Vol. 2” (2004).

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Uma curiosidade… Jeff Dawson explica que o nome de Tarantino é a junção de Quentin, heroína de O som e a fúria, romance do Nobel de Literatura americano William Faulkner, com o sobrenome do pai biológico do diretor. Tarantino substituiu Zastoupil, sobrenome de seu pai adotivo, Curt.

p.s.2 Quase 3h de filme é um desafio para o controle de necessidades fisiológicas. Para não perder um segundo de “Django livre” eu estava disposto a comprometer minha dignidade, mas me segurei bravamente. Líquidos em excesso e ar condicionado não são uma boa combinação. Tarantino valeria uma cueca encharcada.

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Ingresso para o inferno

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< One way trip >

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Carlos Eduardo Bacellar

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O som da ruína

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O som engolfa em seus ecos, que reverberam pelas estruturas afuniladas de condomínios de classe média em Recife. Arquitetura estéril, repetitiva e sufocante que mais lembra uma prisão ou manicômio. Dá no mesmo, aprisiona e perturba o olhar…

O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, transforma autoritarismo, conservadorismo, preconceito e hipocrisia, alicerces precários do status quo da classe média, no alçapão que a derruba em suas perversões e neuroses.

É na leitura crítica de comportamentos do cotidiano que a observação de gestos e atitudes aparentemente banais desvela a bipolarida daquela amostra social enfocada por Kleber – já utilizada como balão de ensaio nos curtas “Vinil verde” (2004), “Eletrodoméstica” (2005) e “Recife frio” (2009). A desagregação do tecido social fica evidente na montanha-russa que chacoalha núcleos de personagens numa viagem emocional entre euforia, frustração e medo da perda de privilégios frágeis.

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Se o ventilador cair pela janela pode significar um tombo para uma classe inferior, talvez não segundo o Critério Brasil, mas certamente de acordo com critérios subjetivos dos medíocres, fermentados no individualismo e na inveja predatórios. Por isso ter uma televisão maior que a do vizinho pode ser motivo para um conflito fratricida. O acréscimo de R$ 300,00 na taxa de condomínio pode ensejar qualquer desculpa para mandar o porteiro embora por justa causa – mesmo que a peça acusatória seja baseada num vídeo captado por um tablet cujo diretor é um adolescente que não tem nada melhor para fazer e no fato de a revista chegar fora do plástico –, sendo desnecessário o pagamento do que é devido ao funcionário dedicado por anos de serviços prestados. Um cheque pode limpar a consciência, mas com certeza ela fica mais leve se esse valor puder ser convertido num bem de consumo durável para a família, mesmo após o fingimento de alguma preocupação com os direitos trabalhistas de um subalterno. Tudo decidido numa reunião de condomínio que mais parece um teatro do absurdo — espetáculo de constrangimento travestido de peça de defesa da probidade. Chantagem velada também pode economizar alguma grana. Por isso suicídio é usado como artifício de desvalorização de imóvel em uma negociação de compra, tudo por um desconto. E Kleber segue implacável: a mãe de família maconheira que se masturba na máquina de lavar, o playboy do condomínio que pratica furtos, o herdeiro que passa o dia fingindo que trabalha com a cabeça na garota com quem transou na noite anterior…

A classe média vive um paradoxo aflitivo: tem horror a pobre, na verdade pavor de um dia cair na pobreza, mas sonha integrar a elite da pirâmide sócio-econômica e se transformar num personagem da novela de Manoel Carlos, de modo a caminhar pela orla da Veneza brasileira – no caso das figuras recifenses de “O som ao redor” – assim como um ator global flana pelo Leblon até a confeitaria Kurt para se deliciar com um macaron de frutas vermelhas. Como se não houvesse amanhã.

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O resultado disso é a alienação, uma ambiguidade moral de espectro amplo, um egoísmo exacerbado, aspirações que não vão além da próxima compra com o cartão de crédito. Para cuidar do manicômio prisional só mesmo uma milícia. Liderada por Clodoaldo (o superlativo Irandhir Santos), impõe seus serviços de segurança propagandeando o medo que se infiltra pelas fraturas psicológicas daquela comunidade. Ela é assombrada pelos fantasmas criados por suas ilusões falidas; esperanças frustradas. Não só… O medo é personificado nas pessoas da favela ao lado.

Dentro desse engenhoso mosaico de relações interpessoais, Kleber Mendonça Filho estabelece elos entre passado e presente. O diretor instiga uma reflexão dialética ao trazer para as estruturas verticais de aço e concreto do século XXI hierarquia, subordinação, dominação e respeito, características da dinâmica entre sujeitos no Brasil patriarcal, desdobradas num contexto hodierno patrimonialista. Aglomerados, os edifícios formam a selva da modernidade. Fauna incluída. Infelizmente, apesar da falência moral, a classe média não é uma espécie em extinção.

Carlos Eduardo Bacellar

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2 pernas, 3 gols

de pernas para o ar 2

 

O bonequinho arria na poltrona. Desmaia ou dorme, quem arrisca? Similares seus nacionais olham de binóculo ou censuram. E qual é o problema? Nenhum. O público goza (!) com frações bem pensantes incluídas. Este, o plot de uma série sadomazô, intitulada (provisoriamente) “Cinema Brasileiro”, em versão secular.

Mas vai que é um tesão mal resolvido entre Crítica e Comédia ou o prazer do paradoxo, tudo bem. O fato é que o capítulo atual da série acima – “De pernas pro ar 2” – é de tirar qualquer chato esteta do cochilo, uma aguinha de coco bem gelada nesse verão infernal. É tudo de bom.

O argumento é o primeiro gol. O que poderia acontecer com aquela mulher (Ingrid Guimarães), após descobrir o prazer e o seu caminho nos brinquedos de prazer? Vicia-se no trabalho e desmaia! Do “estresse” ao “desestresse”, a narrativa do 2, a mulher se reinventa em seus brinquedos, do Brasil para o mundo.

O filme, como obra, é primoroso (segundo gol). Destaco o som e a trilha (impecáveis) e a mudança na direção de arte (o tratamento fake da primeira versão sumiu, sem deixar saudades). Sobre o elenco, os atores do 1 encontraram o melhor tempero aos seus papéis (Bruno Garcia e Maria Paula) e os novos coadjuvantes vão no tom certo.

Sendo “repeteco” ou missão, é quase sempre desafio fazer um 2 melhor que o 1 – ao menos, na indústria de cinema. Ocorre-me, a exemplo, não ser o caso de “O poderoso chefão”, nem de “Se eu fosse você”. Mas, em Pernas, é no 2 que a química pinta plena. Cogito de um tête-a-tête assertivo entre a produtora (Mariza Leão, uma amiga de verdade) e o distribuidor (Bruno Wainer), a apurar o produto. Terceiro gol.

No mais, abra as pernas e morra de rir.

Claudia Furiati

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Medicina alternativa

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Woody Allen como panaceia para todos os males. Esse é o lema da farmacêutica Alice (Alice Taglioni, a Kim Basinger da França, devastadoramente bonita), que adotou uma alternativa radical à alopatia. Melhor teria sido fazer faculdade de cinema, já que na fórmula de suas receitas favoritas sempre há trabalhos do diretor nova-iorquino. Para Alice, o problema não está no corpo, mas na cabeça: “Assista a ‘Manhattan’ (1979) e a ‘Tudo o que você queria saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar’ (1972) após o jantar. Pela manhã me ligue se ainda não estiver sentindo bem. Tenho mais algumas dezenas de filmes de Woody Allen, se for o caso de uma internação em frente à sua televisão. Não há contraindicação, mas a overdose é uma possibilidade e podem causar dependência”.

Alice procura aliviar a somatização alheia ou se automedicar? Se não fosse tão indecentemente bonita, ela poderia ser uma versão feminina de Allen, e parece óbvio ser o que pretende a diretora-roteirista Sophie Lellouche em seu longa de estreia: “Paris-Manhattan”. Retraída, insegura, hipocondríaca (seu tratamento prescreve quilos de remédios e metros de filmes, hoje quantificados em arquivos digitais), desajustada quando se trata de homens e eventos sociais, solitária, antagoniza com a irmã, sofre bullying da família (judia, que coincidência, imagine você…) para arrumar um marido.

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Alice ainda esconde um segredo. A farmacêutica se conecta com seu ídolo de forma muito especial, transcendendo sua íntima ligação com a cinematografia woody-alleniana. Em seu quarto há um pôster em preto e branco do diretor, seu confidente, com quem Alice conversa na tentativa de entender os meandros de nossa vã filosofia. Ninguém melhor que o cronista do cotidiano, que enxerga a comicidade no prosaico, expondo com ironia nossas falhas, preconceitos e perversões como esquetes de um teatro burlesco, para orientá-la no jogo das relações interpessoais. Só que esse Woody Allen, o genérico, é uma projeção do subconsciente de Alice, assim como o ex-jogador de futebol Eric Cantona, em “À procura de Eric” (2009), filmaço de Ken Loach, é uma ilusão criada pelo cérebro do carteiro Eric Bishop num momento de dificuldade.

Você é o que você quer ver. E todos criam narrativas em que são heróis (no caso em questão, uma anti-heroína) ou vítimas, para justificar comportamentos e atitudes, mesmo equivocados. O resultado pode ser uma autossabotagem psicológica. Alice lê sua vida como um roteiro escrito por Allen, compreensão reforçada pelos DVDs que não se cansa de assistir, e não consegue se desvencilhar de tobogã de altos e baixos que a conduz para um poço de expectativas frustradas. Não poderia ser de outra forma, já que o script vai de encontro à sua formação conservadora e à sua ingenuidade, o que a leva à frustração e ao confronto moral. Novamente chegamos a Woody Allen, que, convenhamos, não é o melhor substituto para valium. Talvez para convencer um suicida a optar pelo caminho errado…

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A medicação aqui tem outro nome: o técnico em equipamentos eletrônicos de segurança Victor (Patrick Bruel, o Dustin Hoffman francês), que se torna uma constante de afeição nas incertezas e tropeços da moça. Com ele Alice é resgatada da ficção que encena para si e encontra sua ovelha em meio à multidão. Além de ter um padrinho de peso (aguarde as sequências finais…), para surpresa de Alice, ela não bale. 

Um filme com seus defeitos, mas doce, encantador, envolvente… Caso não precise mentir, diga que vai ficar durante 77 minutos na sala escura babando por Alice Taglioni. Não perca!

Carlos Eduardo Bacellar

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Poesia como instância criadora

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O filósofo Vilém Flusser, numa tentativa de explicar o pensamento humano, dizia que a língua criava a realidade. Mas, o que ou quem criava a língua? A poesia, instância primeira. Tais especulações, perdidas no texto de Gustavo Bernardo – que atiça o espírito crítico –, inquietam quando convergem para leituras do filme “As aventuras de Pi”, de Ang Lee, baseado no romance Life of Pi de Yann Martel.

Lee, um diretor da imagem, e não da palavra, subverte Flusser e colide a retórica metafórica com a função referencial da linguagem para provocar o embate entre ceticismo e crença. O juiz, a dúvida – um meio caminho entre os opostos. O texto de Martel reconstrói o real por meio da linguagem figurada, numa tentativa de convencer os céticos acerca da existência de Deus.

Por meio de uma fábula que tem início com um naufrágio, cujos únicos sobreviventes são um jovem indiano, Pi, uma zebra, uma hiena, um tigre e um orangotango, que lutam pela vida num bote salva-vidas, o roteiro de David Magee aposta na fórmula infantil de uma história da carochinha de modo a propor a reformulação alegórica da realidade – véu que atenua o horror e o desespero. O objetivo: provocar a dicotomia entre uma estratégia de sobrevivência psicológica para suportar o insuportável e a fabulação de uma experiência que carrega o simbolismo de uma força maior, inexplicável por meio do pensamento racional.

Apesar do requinte visual e de todo esmero dispensado a uma mega produção, encantadores, não tenha dúvida, sobra uma discussão que, jogando com construções poéticas manjadas na tentativa de catequizar os infiéis, se torna uma fábula de Esopo, um aforismo desenvolvido, em vez de uma reflexão filosófica sobre os sentidos da religião, a força espiritual e o conforto proporcionados por ela.

A ficção é poderosa. Ela envolve a atenção em mecanismos intrínsecos ao seu realizar e, paradoxalmente, impede uma fuga, apesar de proporcionar exatamente isso. Por isso somos compelidos a ler um livro até o fim, mesmo cientes de seu desenlace. Ao tentar compreender se Deus é ou não uma ficção, Ang Lee entrega sua resposta enquanto formula a pergunta. Como um Paulo Coelho do cinema, ele evoca o sagrado sem desrespeitar o religioso. Assim, evita o profano. De que outra forma o cinema de espetáculo poderia existir, se não como ficção cética permeada de mensagens edificantes?

Carlos Eduardo Bacellar

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