Neste mundo atribulado, em que o trabalho nunca nos deixa e onde o Twitter, termômetro midiático, dá a reação aos últimos acontecimentos (não raro enquanto eles ainda se desenrolam) antes mesmo de a notícia “institucionalizada” chegar, queremos tudo bem resumido, bem mastigado. Queremos a cola da prova que vai nos dizer como vai ser o dia de amanhã. E nessa correria toda, pouco tempo sobra para pensar no passado.
Que relevância tem então um filme sobre um presidente americano, morto faz 147 anos? Um filme que, ao contrário de um “Apocalypse Now” (Francis Ford Coppola, 1979) ou “Platoon” (Oliver Stone, 1986), foca nos mínimos detalhes de uma batalha legislativa e não nos campos de batalha de verdade, da Guerra Civil Americana (1861-1865)? Um filme que ao contrário de “E O Vento Levou” (dirigido por Victor Fleming juntamente com mais dois realizadores não creditados, George Cukor e Sam Wood, 1939), não nos dá um romance arrebatador no centro da trama, mas apenas alguns relances de um amor muito mais complicado?
Em um análise de crítico de cinema, o “Lincoln” de Steven Spielberg parece se encaixar em uma leva de filmes de uma Hollywood que parece estar amadurecendo e trazendo uma visão de mundo menos ingênua também. Desde o “The Hurt Locker” (2008) e o “Zero Dark Thirty” – a hora mais escura para Osama bin Laden, ainda por estrear no Brasil –, da Kathryn Bigelow, passando pelo “Argo” (2012), do Ben Affleck, e talvez até incluindo o “Avatar” (2009), de James Cameron, um sociólogo poderia dizer que são expressões do povo americano digerindo e tentando entender as guerras desta virada de século. Tentando achar um tempinho pra refletir sobre o passado e tirar lições para o futuro, descontadas as distorções e os exageros ufanistas.
Que lições traz o “Lincoln” de Spielberg e o Lincoln de verdade pra nós brasileiros? Desculpe, mas aqui você não vai achar a cola. Seria simples dizer que esse talvez seja o melhor filme do Spielberg desde “Minority Report” (2002), “O resgate do soldado Ryan” (1998) ou a “A Lista de Schindler” (1993) – aquele que for seu preferido. E há argumentos para afirmar isso. E seria simples dizer que o Lincoln de verdade é ídolo de personalidades tão distintas quanto Marx e Trotsky, Walt Whitman e Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Jawaharlal Nehru, George W. Bush e Barack Obama. Tudo verdade.
Mas o que mais importa é dizer: Vai lá, do teu jeito, vale a pena conhecer o Lincoln. Não vai ser fácil, não vai ser tudo mastigadinho não. Mas eu aposto que você vai achar um amigo que, do passado, no presente e para o futuro tem muito a nos dizer.
Para saber mais sobre Abraham Lincoln
Livros:
Team of Rivals, biografia de Lincoln de Doris Kearns Goodwin, livro que inspirou o filme – traz muito mais detalhes da vida pessoal, da política e da equipe política de brilhantes, mas contenciosos rivais, que Lincoln criou e gerenciou durante seu governo.
A versão em português da biografia de Lincoln é uma versão resumida do livro original. Acaba de chegar às livrarias pela Record. Segundo a Folha, as 944 páginas da edição em inglês, no trabalho de edição, passaram para 320. A editora diz que a versão foi feita pela autora.
Battle Cry of Freedom, do historiador James McPherson é um clássico e até hoje serve como padrão, o melhor livro que em um volume resume a Guerra Civil Americana e a influência do Lincoln.
Lincoln’s Sword, de Douglas Wilson, foca no poder das palavras do ex-presidente, mais eficientes que a “espada” do título do livro.
Lincoln, de Herbert Donald Howard, é a outra biografia clássica de Lincoln.
The Lincolns: Portrait of a Marriage, de Daniel Mark Epstein, foca na vida pessoal de Lincoln e, particularmente, na sua conturbada relação com a esposa Mary, que alguns hoje diriam ser bipolar; e corrupta, desviando dinheiro dos jardineiros da Casa Branca para pagar por suas extravagantes compras em Nova Iorque e Filadélfia (Philadelphia para os conservadores). Por outro lado, o amor de Mary e do presidente Lincoln por seus filhos também fica muito claro.
Finalmente, se você gostou de alguns dos coadjuvantes do filme, vale a pena investigar a vida de verdade deles. Aqui algumas sugestões: Seward, Lincoln’s Indispensable Man, de Walter Stahr; Giants, the Parallel Lives of Frederick Douglass and Abraham Lincoln, de John Stauffer; The Man Who Saved the Union, Ulysses Grant in War and Peace, de H. W. Brands.
Filmes:
O filme “Young Mr. Lincoln” (1939) é outro clássico do cinema, de um jovem diretor John Ford e com Henry Fonda no papel principal. Infelizmente, ele geralmente é esquecido por ter sido lançado em 1939, “Ano de Ouro” de Hollywood. Foi obrigado a disputar atenção com clássicos de ainda maior impacto, como “Gone with the wind”, “Mr. Smith Goes to Washington” (Frank Capra), “The Wizard of Oz” (de Victor Fleming em codireção com os apócrifos George Cukor, Mervyn LeRoy, Norman Taurog e King Vidor), “Stagecoach” (do próprio John Ford), “Wuthering Heights” (William Wyler), “Goodbye Mr. Chips” (Sam Wood e o negligenciado Sidney Franklin), “Ninotchka” (Ernst Lubitsch) e “Of Mice and Men” (Lewis Milestone).
“Abe Lincoln in Illinois” (John Cromwell, 1940) consolidou a imagem do Lincoln para a geração que lutou a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, o presidente demorou a voltar às telonas. Gore Vidal escreveu uma peça sobre Lincoln que acabou virando uma minissérie de TV em 1988, com Sam Waterston e Mary Tyler Moore nos papéis principais. Finalmente, Robert Redford, em 2010, dirigiu “The Conspirator”, sobre um dos possíveis envolvidos no assassinato do ex-presidente.
Viagens:
Em Washington, D. C., não deixe de visitar o Lincoln Memorial, monumento em homenagem ao ex-presidente, com sua famosa estátua sentada em uma poltrona e seus dizeres em volta; e o recentemente reformado Ford Theatre, hoje museu, onde o presidente foi assassinado.
E a três horas de carro de Chicago ou duas horas de St. Louis, vale a pena conhecer a até hoje ainda pacata Springfield, Illinois, capital do estado onde Lincoln viveu grande parte de sua vida, fez carreira de advogado, se casou, teve filhos e ingressou na política. A casa onde o Lincoln morava faz parte de um bairro histórico bem preservado e a Abraham Lincoln Presidential Library não só é uma biblioteca, mas, sim, um museu muito bem bolado, com algumas exibições no patamar de Disney.
Spencer Finch — Correspondente do @doidoscine na Filadélfia, pai do Lucas, leitor voraz, amante de cinema e primo de @cebacellar