Arquivo do mês: maio 2012

Recorte impreciso da experiência

A vida não é momento, mas processo. O hoje deve ao ontem sua constituição – e o futuro deriva dos dois. Se dissociarmos nossas conquistas de nossa história, momentos definidores se transformam, para olhos descontextualizados, em recortes imprecisos de nossa experiência e, consequentemente, de quem somos.

O que fortalece a urdidura de um documentário são os personagens. Se você esgota um personagem em determinada situação, circunscreve o “enredo” pessoal a um momento, o antes se torna uma interrogação e o depois uma incógnita na cabeça do espectador. A incerteza, na ficção, pode gerar uma brecha para o existir, que se espremerá nas dúvidas. Em um doc, se essa incerteza, constituída de vácuos de informação que ilham os personagens, migra do psicológico (onde é muito bem-vinda, pois provoca nossa interpretação) para o registro do real, torna-se traiçoeira, pois enfraquece histórias e nos ilude com uma definição de verdade.

É onde peca a documentarista Julia De Simone em seu “Romance de Formação”. Quem são seus personagens, Julia? Donde eles vieram? Qual é a história de cada um? Como se desenrolou a trajetória de cada um até o sucesso? Sucesso? São questionamentos que não são respondidos claramente ou ficam nebulosos.

Julia acompanhou a rotina de quatro estudantes brasileiros, três no exterior e um no Brasil. O ponto em comum: ambos estão distantes de suas raízes. São eles: Wilian Cortopassi, cursando Química na PUC-Rio; Caetano Altafin, bolsista da Harvard Law School; Victoria Saramago, doutoranda em Literatura em Stanford; e Fábio Martino, pianista, estudante de Música na Universidade de Karlsruhe, na Alemanha.

Além de termos de nos contentar com momentos incomoda a irregularidade dos registros. Quando nos apaixonamos, por um personagem, e todos são apaixonantes, logo somos remetidos a outro. Somos passageiros de uma montanha-russa que, próxima da identificação e da empatia, mergulha na saudade. Essa sensação de desassossego é amplificada pelas dúvidas acerca da bagagem cultural e social dos jovens.

Outro problema é a falsa sensação de que aquela experiência estaria ao alcance de qualquer um que ousar sonhar. Sim, tenho meus preconceitos, como todo mundo. Não me deixo enganar pela palavra bolsista. Caetano parece filho de uma abastada família paulista dos Jardins. Victoria, aos meus olhos, com aquele ar de intelectual francesa do século XIX, me faz imaginar que é produto da classe média alta da Zona Sul do Rio. E nem sei se ela é carioca… Wilian e Fabio poderiam ser o contraponto, mas, novamente, sabemos de menos. E são poucos os que têm formação adequada para pleitear uma vaga no Instituto Militar de Engenharia (IME); menos ainda os que têm um piano em casa para brincar na infância. Duvido que algum deles seja de classes menos favorecidas. Como saber? As informações são escassas. Terreno fértil para os preconceitos, como disse. Um doc elitista? Produto para fisgar o imaginário dos jovens? O encantamento pelas universidades do exterior, especialmente as americanas, é patente na juventude brasileira, o que atrai o interesse para o filme de Julia. O doc não é uma propaganda institucional, mas funciona como uma.

Apesar dessa visão crítica, é um trabalho que merece atenção. É interessante constatarmos o amadurecimento dos personagens. A inocência dando lugar ao calejamento emocional, ao desencanto, ao ceticismo, à desromantização do roteiro que imaginavam para suas vidas. A solidão e o silêncio como companheiros de caminhada.

É muito forte o simbolismo de algumas passagens. Caetano e seu jantar virtual com a namorada, que está no Brasil. Naqueles instantes, ele, paradoxalmente, existe num não lugar, onde leva uma não vida. Canalizado pelas relações geográficas fluidas da modernidade, Caetano é a metáfora de uma geração conectada que se dissolve entre fronteiras e estabelece no espaço virtual suas ligações com o real. No Facebook, por exemplo, rede social que traduz bem a mentalidade americana – que, espertamente, incute em cada um de nós a possibilidade de uma falsa individualização, mas nos torna massa de consumo – nós podemos ser outro, criamos uma identidade publicitária.

Victoria, que traz no sobrenome a literatura. Aprimida pelas estantes de um biblioteca, ela se liberta ao sufocar nas palavras. Por meio da literatura, ela pode experimentar o impossível, os excessos, aquilo que não deveria, mas faz parte de nós. O mais irônico é que, subvertendo o pensamento aristotélico, ele percebe que as absurdidades integram a arte, perseguida como uma abstração intelectual, e a vida tem regras – por isso ela, soterrada em leituras obrigatórias, não consegue terminar o Harry Potter.

O equilíbrio entre ordem e desordem não se complementa. “A experiência do ficcional supõe a experimentação do que não se conhece”, diz Luiz Costa Lima. Um doc não é ficção nem pode estar imerso nela. O desconhecido, se tanto, é a história do(s) objeto(s) do documentarista. “Romance de Formação” se esgota nas bordas irregulares de seus personagens e nos obriga a exercícios de imaginação para entender e preencher experiências, esquecendo-se de algo capital: a fabulação dos sujeitos.

Ou, talvez, tudo que eu pensei com meus botões esteja errado e esses fragmentos de um discurso amoroso dos personagens, desconexos e aleatórios, sejam o objetivo de Juliacapturar esquivos sopros mornos da existência. Roland Barthes nos ajuda a entender por quê: “[…] o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é sustentado por ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). Quando um discurso é assim lançado por sua própria força na deriva do inatual, deportado para fora de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo que seja, de uma afirmação […]”

Sabe das coisas esse Barthes…

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Victoria entende minha alma vagabunda. Ainda não consegui terminar a tetralogia Crepúsculo e estou arranhando timidamente a superfície do primeiro volume de Jogos Vorazes. Alguém tem o telefone dela?

p.s.2 Alguém viu a Julia Bacha nos créditos? Eu vi!

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“Lo Sceicco Bianco” e a Expiação do Desejo

“Lo Sceicco Bianco” (1952) é o primeiro filme da carreira-solo de Fellini e marca, também, a estreia de duas parcerias importantes para sua filmografia: com Nino Rota, na trilha musical, fundamental na composição de sua marca; com Giulietta Masina, na pele da personagem Cabiria, que daria título e corpo à protagonista no filme seguinte e primeiro grande sucesso do diretor.

O roteiro do filme só caiu em suas mãos por desistência de Antonioni e Lattuada, mas para a crítica da época Fellini era a escolha mais acertada: tinha experiência como escritor de fotonovelas, a veia cômica e gosto pela farsa de costumes, além de uma observação cáustica da sociedade.

O filme não foi bem recebido, nem pela crítica, nem pelos espectadores, e amargou meio século até ser redescoberto e ter reconhecido seu valor de “pequena obra-prima”. Desde então muito já se escreveu a seu respeito, mas há ainda muito outros motivos para se escrever sobre “Lo Sceicco Bianco”. Fait divers.

Mais do que repisar os temas da alienação pela cultura de massas e pela igreja, ou o conformismo pequeno burguês presente e criticado, também, por Fellini nesse filme, o que me interessa discutir aqui, é que não é senão ‘a expiação do desejo’ o tema de “Lo Sceicco Bianco”.

O roteiro do filme nos mostra dois jovens recém-casados, na Itália dos anos 50: eles desembarcam em Roma, em lua de mel, empolgados e decididos a realizar, cada qual, seu próprio desejo.

Wanda, a jovem e ingênua noivinha, deseja encontrar seu ídolo, o galã da fotonovela mais popular no momento (“Lo Sceicco Bianco”, representado por Alberto Sordi); enquanto isso Ivan, o noivo, uma espécie de ‘social climber’ provinciano, busca o reconhecimento do tio, um alto funcionário-público e representante do lado rico e bem-sucedido da família.

Esses dois jovens são o retrato de uma cultura conservadora, mas o desejo da noiva desobedece e desestabiliza a ordem. Com o sumiço da jovem atrás de aventuras com o ator-galã, Ivan tem que encobrir seu desaparecimento da família, no decorrer de toda lua de mel, seguindo uma agenda repleta de compromissos sociais, que culminaria com uma audiência papal, para uma ‘bênção de casais’.

Trata-se, portanto, de um roteiro concebido sobre dois eixos, em torno de duas aventuras distintas e paralelas: a corrida de cada um dos protagonistas, noivo e noiva, atrás do próprio sonho, com direito a toda sorte de contratempos e desencontros, num verdadeiro jogo de esconde-esconde entre os personagens.

Por se tratar de uma história que tem como tema ‘o desejo’ – e como o desejo, segundo Freud, é sempre o desejo do outro – é inevitável que esses protagonistas vivam o choque da fantasia com a realidade e passem por desilusões.

Na busca do desejo que os move, as situações se sucedem e o desejo desencadeia acontecimentos fora do controle, expondo os protagonistas a riscos e perigos, que magicamente, são contornados e os protagonistas escapam de serem desmascarados.

É assim que age e interfere a veia cômica de Fellini: os jovens amargam esse encontro com a realidade, em uma aventura em tom de comédia, de farsa. Fellini se vale mais do recurso de caricatura do que de sátira, para fazer sua crítica social. Ri da tendência dos jovens de se deixarem enganar e serem manipulados pelo coração e pelas convenções sociais.

Ainda que patéticos e beirando ao ridículo, Fellini tem o cuidado de retratá-los com simpatia e ternura, com delicadeza e compaixão. Isto para mostrar o quanto somos vítimas de nossos desejos e sonhos, embora eles sejam tão importantes e necessários na vida – “a vida real é a vida dos sonhos”, diz um dos personagens numa das cenas do filme.

“Lo Sceicco Bianco” é, com certeza, “um film qu’il n’est pas trop tard de découvrir” (um filme que não é tarde demais para descobrir) – como escreveu um crítico francês de cinema, nessa estreia, Fellini lançava as bases de seu estilo autoral e já nos oferecia alguns dos grandes momentos da história do cinema.

Andréa Nogueira é jornalista e pesquisadora

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Verdades artificiais

Para Nathalia Dill – você é o que nos faz sentir

As emoções que o cinema proporciona derivam de sua essência, a imagem, talvez a droga mais poderosa que exista. É (também) com ela, no âmbito da arte – espaço dialético permeado de ambiguidades, polissemia, jogos mentais, provocações dos sentidos – que nosso imaginário é moldado. O diretor de fotografia de uma produção, em quem fala a luz, não é muito diferente de um traficante de drogas. Sempre oculto por trás das câmeras, brincando com lentes, pode projetar, caso seja competente em seu ofício, a ilusão emocional que desejar: felicidade, tristeza, angústia, desespero, solidão… Uma miríade de sentimentos que não se afasta de nós nem quando as luzes do cinema são acesas. Após a primeira exposição, tatuados como um negativo orgânico, nós sempre ansiamos por mais.

O diretor Marcos “Estamira” Prado sabe como explorar nossa adicção, pois ele também é um viciado em imagens. Quem melhor para entender? Documentarista, Prado não consegue mais se bastar no real e é atraído pelas possibilidades sedutoras da ficção. Todo viciado acredita estar no controle, como João Moreira Salles na primeira versão de “Santiago” (2007). Até descobrir que ele é controlado – como um marionete de sua própria técnica. Interferindo na performance de seu mordomo, forçando a transformação da atuação em encenação, Moreira Salles, inconscientemente, pede algo diferente da verdade, algo mais forte, que fala a seus desejos, e transmuta seu documentário em ficção.

Esse conceito relativo chamado verdade ilude os diretores nos documentários – já que o artificialismo é criado quando a câmera é colocada em seu objeto ou personagem – e na ficção – mesmo acreditando que aquilo é uma invenção “controlada”, os cineastas instigam os atores a abraçarem a essência de seus personagens. A diferença é que, apesar de ambos os formatos se basearem nas possibilidades de seus “atores”, a ficção não se esgota no personagem, porque há algo chamado roteiro que desconhece os limites do ser e não teme explorar extremos.

Paraísos artificiais”, primeira experiência de Marcos Prado na condução de um longa ficcional, mistura princípios ativos antípodas que, uma vez repudiados, geram a mais violenta crise de abstinência: desejo e obrigação.

Na trama, que confere contornos hodiernos a um drama shakespeariano, como fez Baz Luhrmann em seu “Romeu + Julieta” (1996), o tráfico internacional de substâncias entorpecentes enreda as histórias dos protagonistas: a DJ Érika (Nathalia Dill, exuberante, expondo em seu exercício de entrega o que tem de melhor, mas que às vezes é escamoteado por aquele jeitinho tímido: talento) e o fiscal da natureza (Luca Bianchi, o Christian Bale carioca, ator mais sortudo do momento).

Após a morte misteriosa do pai, Nando se sente responsável pelo futuro da mãe Márcia (Divana Brandão) e do irmão Lipe (César Cardadeiro). Surge para o rapaz uma oportunidade de levantar uma boa grana, mas Nando esquece que de boas intenções o inferno está cheio. Geralmente, dinheiro fácil e licitude não fazem parte do mesmo enunciado, e Nando se torna mais uma mula do tráfico de substâncias sintéticas entorpecentes que vai parar no xilindró. Rodado em Amsterdam, Recife e Rio de Janeiro, “Paraísos artificiais” delineia de forma caleidoscópica o arco de Érika e Nando. O roteiro, assinado por Prado, Cristiano Gualda e Pablo Padilla, fragmenta espaço e tempo numa viagem que instiga nossa percepção. A montagem, sob responsabilidade de Quito Ribeiro, embaralha passado(s) e presente num encadeamento não linear lisérgico, que nos conduz da euforia à depressão. A direção de fotografia, explodindo em cores hipnóticas que criam o ilusório viciante, é de autoria de Lula Carvalho.

A festa rave, o Woodstock da juventude que está aí, fervilhando de expectativas e possibilidades aditivadas pelas drogas, em que Nando, entorpecido, é cooptado para um ménage à trois psicodélico com Érika e sua namorada, a estonteante Lara (Lívia de Bueno numa atuação de dar inveja a Angelina Jolie em “Garota interrompida”, de James Mangold, 1999) – numa transa avatariana, tintas que brilham sob a luz negra demarcam a fronteira entre corpos que quase se confundem; a roubada em Amsterdam, onde Nando volta a rever Érika e os dois se apaixonam e desmoronam; a saída da prisão e a apreensão com as escolhas erradas do irmão – como em “A outra história americana” (1998), de Tony Kaye; tudo converge para um desenlace que desafia nosso ceticismo acerca de predeterminação – gozo, perdas, sorrisos e lágrimas, encontros, desencontros e reencontros condensados em 96 minutos.

A experiência com drogas marca a vida e o emocional de Nando e Érika – a bala de ácido lisérgico, veneno de Romeu e Julieta do século XXI, atravessa o casal deixando sequelas que zombam da morte. Mas a droga que Marcos Prado divide conosco tem um efeito mais devastador, pois ela transforma mentiras em nossas verdades – e continuamos querendo nos enganar na tentativa de compreender quem somos e de nos aproximar de quem gostaríamos de ser.

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Não sei se Deus é um DJ, mas, quando imaginamos um como Nathalia Dill agitando as pistas, temos certeza de que, no mínimo, foi criado por Ele num dia de muita inspiração.

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A felicidade de Sergei Loznitsa é a minha infelicidade

Quem me conhece sabe que nunca fujo de uma provocação saudável. Nunca! Em uma discussão acerca do filme “Minha felicidade”, embate retórico cuja arena virtual foi o Facebook, o amigo Marcelo Janot (DJ e crítico de cinema) ironizou, com razão, minha preguiça intelectual. Laconicamente, tachei o filme de chato – para não perder muito tempo com uma produção que torrou meu saco e meu dinheiro. Argumento pouco defensável, segundo ele. Janot, que fez a crítica do filme publicada no jornal O Globo, utilizou seu marionete para aplaudir de pé o trabalho do diretor Sergei Loznitsa. Pois bem… Vamos, então, desdobrar chato:

 

A projeção de “Minha felicidade”, que se arrasta ao longo de 2h37, poderia ter sido resolvida em 1h30 (no máximo). O cimento que sepulta corpos na cena inicial poderia ser a areia movediça que absorve as potencialidade da produção em… nada. A história: caminhoneiro se perde no ermo russo e precisa voltar à “civilização”. Uma espécie de “The Grey”, de Joe Carnahan. Só que em vez de lobos temos… gente.

O diretor Sergei Loznitsa acerta quando entrelaça a degradação do indivíduo com a falência moral da ex-URSS – o chorume que escorreu da fragmentação que originou a Rússia e suas “nações satélites” (em constantes conflitos étnico-religiosos) impregnou a história dos povos da região. Mas acredito que há equívocos na montagem. Os fragmentos do passado são como projéteis que se espatifaram num relato duro demais; os cacos tomam rumos aleatórios e se cravam na primeira superfície que encontram. O encadeamento é prejudicado por rupturas que diluem a força de determinadas cenas. Ao exumar cadáveres para compor seu monstro, Loznitsa não consegue articular as partes putrefadas e concentrar a força de sua ficção em um todo coeso. Há longas sequências que não dizem nada, estão ali simplesmente para atingir uma determinada minutagem. Um grande vazio que se perde (e se esgota) em paisagens desoladas, congeladas, sem nenhum sentido estético.

Há algumas sequências que, retiradas do todo, elevam a produção. A câmera passeando pelos rostos no mercado (sisudos, talhados pelo tempo e pelas circunstâncias, que fazem escorrer das marcas na pele a seiva da desilusão e da resignação). A atitude extrema de um soldado contra seu superior corrupto. Acostumado com o horror (que se torna seu mundo) e destituído de tudo, opta pelo suicídio social e se torna um fantasma, abandonando até o amor. O professor que abriga dois soldados em sua casa e, inconscientemente, faz apologia dos valores alemães, pagando o preço da inocência de seu esclarecimento (razão dialogando com a barbárie). A matrona russa que extravasa as necessidades do corpo com um “zumbi” – apesar das circunstâncias, são necessários dois tipos de carne para continuar vivendo.

O resto é… o resto. Entulhos cobertos de neve que atrapalham nosso olhar. Um branco intercalando o que interessa do que interessa.

A cena de prostituição infantil chega a ser um clichê. A própria personagem desmonta aquele absurdo desancando o protagonista e sua moralidade fora de contexto, ridícula – ali não existe espaço para aquela atitude; ali crime é não pecar. Não há necessidade de explicitar a podridão humana com arquétipos. Só faltou escalar a Juliette Lewis como uma traficante de drogas. A metalinguagem tentando reparar os erros de uma mácula no roteiro, assinado pelo próprio diretor.

O trabalho de Loznitsa remete à cinematografia do diretor argentino Gaspar Noé, especialmente ao filme “Sozinho contra todos” (2002). Infelizmente sem a violência cênica de Noé – crua, chocante e primorosamente trabalhada, sem gorduras –, autor da obra-prima “Irreversível” (2002).

Reforçam minha insatisfação as palavras de dois críticos. Luiz Fernando Gallego, apesar de, como eu, elencar pontos positivos, achou “Minha…” longo e pleonástico na defesa de sua “tese” sobre a maldade humana à flor da pele, o que afinal não chega a ser nenhuma novidade.

Já Carlos Alberto Mattos disse que críticos no mundo inteiro têm feito um bocado de contorcionismo para sustentar os elogios a “Minha felicidade” e contornar as evidentes armadilhas narrativas e temporais do filme. Para mim, aquilo soou como um sucedâneo do “Não Matarás” (1988) do Kieslowski, temperado por um grande ressentimento de Sergei Loznitsa com sua Bielorrússia natal. Um beco sem saída metafórico povoado por bons e maus, sendo ambos capazes de matar.

Quem quiser ver neve em abundância, recomendo “Whiteout”(2009). Em ambos os filmes, o branco embaça a ação dramática e enfraquece e reflexões mais profundas acerca de nossa condição. “Minha felicidade” peca pelo excesso: seria mais se fizesse menos. O gelo, manchado de sangue e pólvora, demora a derreter e a revelar o que há por baixo. Acredito, Janot, que esses argumentos são um pouco mais defensáveis.

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. A cabeça do Janot estava a prêmio após a sessão em que assisti ao filme. Várias pessoas (entre aquelas que resistiram até o fim da projeção), com o homicídio doloso no espírito, queriam balear o Bonequinho que fez a crítica. Ouvi em silêncio, engatilhando no meu íntimo uma Magnum .45 e mirando na testa do sósia de Roberto Benigni ao som de Ai, se eu te pego, do Michel Teló. Respirei fundo… Lembrei que ainda não fui convidado para a Panelinha do Janot. Ironicamente, para o bem da saúde do DJ, dessa vez evitei que tudo acabasse em música: a marcha fúnebre…

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Arquivado em Carlos Eduardo Bacellar, Fuja dessa roubada!!!