Arquivo do mês: junho 2011

Espirituosidade recheando as entrelinhas de J. K. Rowling

Os fãs (ou seriam detratores?) de Harry Potter descobriram uma forma bem criativa de extravasar a ansiedade (ou a repulsa) enquanto aguardam a segunda parte do sétimo (e último… snif… snif…) filme das aventuras do bruxinho, criação da inglesa J. K. Rowling.

Contorcendo-me de tanto rir, como que sob o efeito do feitiço Cruciatos, resolvi republicar aqui as divertidas montagens que rolam na Internet.

Cortesia do blog parceiro @osindicados, que garimpou, na rede, as espirituosas imagens. Estamos juntos na contagem regressiva para a estreia nos cinemas. Anote na agenda: dia 15 de julho.

EU NÃO AGUENTO ESPERAR!!! Perdão… Foi só um desabafo…

Carlos Eduardo Bacellar

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À meia-noite, nem todos os gatos são pardos

Sessão de terapia: Cinderela às avessas em Paris, arquétipo do mentor, “De volta para o futuro”, O Mágico de Oz e a literatura de Gertrude Stein na jornada do escritor de Woody Allen

Diretor de 47 produções, Woody Allen, realizador americano nascido no Brooklyn (NY), que completa 76 anos no dia 1o de dezembro, já deveria ter superado a insegurança. Sua nova empreitada made in Europe ― a expressão é bem adequada, na medida em que os altos custos de filmagem nos EUA, somados aos elogios rasgados dos europeus dispensados à sua obra (a velha babação de ovo), estão entre os motivos que levaram Allen a buscar uma melhor relação custo-benefício do outro lado do oceano ―, “Meia-Noite em Paris”, filmada inteiramente em território francês, demonstra o contrário.

No livro A jornada do escritor (Ed. Nova Fronteira, tradução de Ana Maria Machado), de Christopher Vogler, um dos cânones para roteiristas, amadores ou não, no mapeamento da jornada (título da primeira parte), encontramos um capítulo dedicado à figura do mentor. Segundo Vogler, “a relação entre o herói e o mentor é uma das mais ricas fontes de entretenimento na literatura e no cinema”. Woody Allen, roteirista de ofício, busca nas palavras do livro (e nas sessões com seu terapeuta, que certamente influenciam na construção de seus roteiros) maneiras de superar a frustração com parte da crítica saudosista, especialmente a americana, que ovaciona seus (brilhantes!) trabalhos do passado ― “Annie Hall” (1977), “Manhattan (1979), “Zelig” (1983)… ―, mas não vê com bons olhos sua nova política de construção fílmica, iniciada com “Match point” (2005).

Ainda de acordo com Vogler, o “arquétipo (do mentor) se expressa em todos aqueles personagens que ensinam e protegem os heróis e lhes dão certos dons. Pode ser Deus caminhando com Adão no Jardim do Éden (essa o Woody não toparia…), Merlin guiando o rei Arthur, a Fada-Madrinha ajudando Cinderela, ou um veterano dando conselhos a um recruta novato.”

No caso de Allen, ao conceber o argumento de “Meia-noite em Paris” ― assinado pelas produtoras Gravier Productions, Mediapro, Televisió de Catalunya (TV3) e Versátil Cinema , ele deixou de lado as dimensões metafísicas e religiosas para pinçar seus arquétipos no panteão da arte (especialmente nas primeiras décadas do século XX).

Seu alter ego nesta nova sessão de tratamento psicológico orçada em US$ 30 milhões e acompanhada de vinho e croissants num formato de guia turístico francês para compreender o self, o roteirista frustrado (e aspirante a romancista) Gil (Owen Wilson), encontra em Paris o caminho de tijolos amarelos que poderá levá-lo ao Mágico de Oz. Noivo da patricinha Inez (Rachel McAdams), ele descobre que existe algo além de um relacionamento falido, empurrado com a barriga em nome das aparências, e uma carreira que já não lhe dá mais satisfação.

Na busca por algo que nem ele sabe definir, Gil, ao passear pelas ruas da cidade francesa à noite, tal como uma mistura de Cinderela às avessas com “De volta para o futuro”, é remetido para o passado quando o relógio dá doze badaladas, como num passe de mágica.

Desnorteado (paradoxalmente) pelo deslocamento temporal sem turbulências, o escritor se depara com figuras emblemáticas da literatura, da pintura, da poesia, da música, do cinema… enfim, do mundo das artes do final do século XIX, início do século XX, período de referências tão caro a Gil.

Nosso herói encontra alguns personagens históricos que sempre sonhou conhecer (ídolos, mentores): Gertrude Stein, Zelda e Francis Scott Fitzgerald, Cole Porter, Pablo Picasso, Luis Buñuel, Salvador Dalí, Ernest Hemingway, Thomas Stearns Eliot, ou seja, um manancial de artistas, hoje ungidos com o reconhecimento da Academia.

Diante da possibilidade de viver imerso no caldo cultural daquela plêiade, Gil se torna reticente com relação ao presente ao mesmo tempo em que passa a reconsiderar suas prioridades até então.

Menosprezado por sua noiva e os futuros sogros, ele encontra no passado alguém compatível com sua sensibilidade. A groupie Adriana (Marion Cotillard) se encanta pelo jeitão tímido, ingênuo, levemente idiota, marcado pela hesitação e carência do verborrágico Gil, que diz, diz e não diz nada, mas preenche as lacunas da fala com uma doçura abobalhada sublimação da neuroses de Allen, muito bem trabalhada por Owen. O problema é que a sintonia afetiva é inversamente proporcional ao apego temporal. Gil conjuga seu incômodo com o de Adriana e desperta para a inexplicável (e inesgotável) insatisfação humana: a melhor época é sempre aquela que não vivemos. Desconstruindo “in loco” mitificações do passado, Allen valoriza o presente.

A viagem do diretor encontra sua gênese no livro Autobiografia de Alice B. Toklas, da poetisa e romancista americana Gertrude Stein, a quem Gil, no filme, submete seu romance para avaliação. Gertrude narra, da mesma forma que Woody Allen encena em seu filme utilizando a carcaça de uma terceira pessoa como balão de ensaio para tentar entender e resolver equações internas , como Paris, magnetizada pela efervescência cultural de uma época, funcionou como ímã para diversos artistas entre as décadas de 1910-1930, muitos deles vanguardistas que gravitaram, com maior ou menor proximidade, em torno da figura de Gertrude.

Com seu característico humor irônico e autodepreciativo, sem escorregar na soberda da genialidade, Allen entende que disciplina, método e trabalho são os caminhos para a perfeição como deixa claro para Eric Lax, no livro Conversas com Woody Allen, publicado aqui pela Cosac Naify.

Volto ao livro de Vogler, que, dissertando sobre a função psicológica do mentor, destaca a força do self (o deus dentro de nós) na anatomia da psique humana. Nas palavras do escritor, assim como o Grilo Falante, na versão da Disney para o Pinóquio, o self atua como uma consciência, para nos guiar na estrada da vida quando não houver uma Fada Azul ou um Gepeto por perto, para nos proteger e mostrar o que é certo ou errado.

A mente criativa e fantasiosa do hipocondríaco diretor nova-iorquino (ele tinha que colocar alguns comprimidos de valium no bolso de Gil…) procura em seus mentores do mundo das artes a chancela de que precisa para continuar filmando, apesar dos pesares e das opiniões negativas. Se ele liga para o que acham de seus filmes? A nossa opinião não deve ser muito importante para ele, mas a de Hemingway com certeza é.

Sabe por quê? Vogler novamente me salva: “as figuras dos mentores, seja nos sonhos, nos contos de fadas, nos mitos ou nos roteiros, representam as mais elevadas aspirações dos heróis. São aquilo em que o herói pode transformar-se, se persistir na sua Estrada de Heróis.” Woody Allen, mesmo não estando mais no “Kansas”, segue na dele.

Por favor, não me leve muito a sério… São só devaneios de um pseudointelectual inquieto.

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Alguém falou em Carla Bruni? Ela participou mesmo desse filme? Nem reparei…

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X-Men – Primeira Classe

Nos idos anos 90 (do século passado), o desenho animado dos X-Men passava pontualmente às 17h no Canal Fox. Minha “viagem” todos os dias de manhã era deixar o dispositivo VHS pré-agendado para gravar os episódios em versão original, testando as possibilidades “mutantes” da recém-descoberta tecla SAP.

De lá pra cá, meus encontros com os X-Men (e meu alter ego Jean Grey e seus cobiçados poderes telepáticos) aconteceram na tela grande. E, na maioria das vezes, sem muito entusiasmo, confesso. Ao sair das sessões de cinema, pensava que gostava mesmo era do desenho animado. Mas na última segunda-feira me surpreendi.

“X-Men – Primeira Classe” é bacanérrimo! Não só por ter aventura, ação, características típicas de um filme de super-heróis , mas também MUITA profundidade na composição dos personagens. O roteiro põe em foco justamente o que mais me intrigava no desenho animado: o que significa para o mutante lidar/aceitar o seu poder no dia a dia; “dilema” que aparece principalmente na mutante Mística, alguém asqueroso capaz de transformar-se na mais sedutora das mulheres, alguém que se esconde o tempo todo de si e do mundo. O personagem Magneto também aparece rodeado de questões “existencialistas” por ser refém de seu próprio ódio, o que determina sua conduta consigo mesmo e com o mundo ao seu redor.

O filme traz ainda um Xavier absolutamente sensacional em sua dimensão humana. É maravilhoso, bem-humorado, relax com a vida — bem diferente de como aparece no desenho animado — e muito falho, o que o torna vulnerável no confronto com Magneto. Ao longo da narrativa, Kevin Bacon e seu Sebastian Shaw também merecem destaque. Só pra ver o triângulo nada amoroso de Xavier, Magneto e Shaw já vale o ingresso, pois a pipoca e o refrigerante ficam por conta do questionamento que o filme nos oferece: dá pra ser feliz se não nos aceitarmos simplesmente como somos, com nossas belezas e nossos monstros?

Helena Sroulevich

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Ian McKellen tirando onda

Espanando a falsa modéstia, Ian McKellen aproveita o prestígio de seus personagens no cinema e brinca com o olho gordo dos que tentam secá-lo. Por que a @Camiseteria não pensou nisso primeiro?

Carlos Eduardo Bacellar

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Ponte de Khazad-dûm: Gandalf x Balrog

A erupção de um vulcão, desta vez a do chileno Puyehue, me remete novamente ao universo fantástico de J. R. R. Tolkien. Fique com algumas ilustrações do duelo entre o mago Gandalf e o tornado F5 composto de sombras e chamas chamado Balrog. O embate ocorreu na Ponte de Khazad-dûm, nas entranhas das Minas de Moria. Cortesia do site Rolonzo Tolkien, hospedado pela comunidade (religiosa) forjada por fãs e para fãs conhecida como TheOneRing.net. Até quem não é aficionado sentirá o coração batendo mais forte com as ilustrações, trabalho de artistas extraordinários — como os irmãos Greg e Tim Hildebrandt — que se entregam com paixão ao desafio de materializar as aventuras de Frodo e a Sociedade do Anel na Terra-Média.

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Gozei nas calças quando vi essas imagens.

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Lisbeth Salander sem censura

Liberado o pôster proibido para menores de 18 anos do remake hollywoodiano de “The girl with the dragon tattoo”, transposição para as telas do primeiro romance da Trilogia Millennium (Os homens que não amavam as mulheres), produto da criatividade e militância do jornalista e ativista político sueco Stieg Larsson (1954-2004).

Dirigida por David Fincher, a versão americana traz Daniel Craig como o jornalista pegador Mikael Blomkvist e Rooney Mara como a hacker Lisbeth Salander.

A imagem foi publicada hoje no Omelete. Segundo os cozinheiros do site, o filme estreia nos EUA no dia 21 de dezembro. No Brasil, em 10 de fevereiro de 2012.

Sabe qual foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando vi a imagem? Ah!, se eu fosse o Magneto!

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Tá bom… Já entendi… Chega de Lisbeth Salander. Por enquanto…

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Assim como amar, escrever não é fácil

Muita gente me questionou sobre o parágrafo de abertura do meu texto acerca do filme “Paris, Texas”, do Wim Wenders. Reproduzo o trecho:

“Perceber as dimensões paradoxais que tornam intercambiáveis as fronteiras entre amor e ódio — e os subprodutos do desgaste psicológico gerados com a aproximação e reaproximação de desejos e expectativas antípodas — pode facilitar o entendimento de como alguém é capaz de desistir da pessoa que ama (e até de si próprio) como gesto de altruísmo máximo.”

As meninas (principalmente) ficaram incomodadas. Questionaram-me sobre o que eu quis dizer com “as dimensões paradoxais que tornam intercambiáveis as fronteiras entre amor e ódio”. Explico, ladies

Apesar de amor e ódio serem considerados antônimos — exacerbações sentimentais que, em princípio, repudiam interseções entre si –, amor implica ódio e vice-versa, tornando qualquer relacionamento agridoce (e muito mais interessante).

Caramba… Isso ficou bonito… Juro que saiu na empolgação do momento. Dá para patentear?

Carlos Eduardo Bacellar

p.s. Fiquem com All we ever need, música da banda americana Lady Antebellum (de Nashville para o mundo!!!). Só no violão e gogó.

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Para sempre Lisbeth Salander

Arte do ilustrador espanhol Fernando Vicente, para o jornal El País, publicada em 6 de setembro de 2009, próxima ao artigo Lisbeth Salander must live, do Nobel peruano Mario Vargas Llosa.

Todo o crédito para o blog Heresy and Beauty, de Pedro Ortega, que publicou um texto mais longo sobre essa ilustração e o trabalho de Vicente. Espaço devotado ao universo da arte (seja ela clássica ou contemporânea) que merece nosso prestígio pela qualidade — textual e visual — das postagens.

Carlos Eduardo Bacellar

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Cadê os outros filmes europeus baseados na Trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson?

Ao perceber que a simbologia de suas ações poderia ser decodificada pelo mundo como instrumento político do Tio Sam, o Super-Homem, que não tem vocação para títere ideológico, anunciou recentemente que vai renunciar à cidadania americana.

Para evitar que o número de passaportes diminua nas estatísticas oficiais, o governo americano resolveu cooptar ideias do outro lado do Atlântico, carimbar a águia — ave de rapina não seria a forma substantiva com a conotação mais apropriada? — da liberdade (?) no ativo imaterial e reformatá-lo para atrair mais alguns milhões de dólares para a indústria hollywoodiana.

Os três romances da Trilogia Millennium — best-sellers da lavra do jornalista e ativista político sueco Stieg Larsson (1954-2004) — já foram transpostos para a telona e lançados na Europa em 2009, e timidamente nos EUA em 2010. Os filmes, coproduzidos por Suécia, Dinamarca e Alemanha (no rateio de produção do precursor da franquia ainda entrou a Noruega), foram dirigidos por Niels Arden Oplev (“The girl with the dragon tattoo”) e Daniel Alfredson (“The girl who played with fire” e “The girl who kicked the hornet’s nest”).

Por aqui, só o primeiro filme viu a luz, ou melhor, a escuridão de algumas salas de cinema. Apesar da qualidade estética e do excelente desempenho de Noomi Rapace, encarnação sueca da hacker Lisbeth Salander (alma dos livros e filmes), a produção teve vida curtíssima no circuito comercial. Talvez a língua nórdica, mesmo desmistificada pelas legendas, cause estranhamento e afaste o público.

Agora, infelizmente, só escutamos falar do remake americano, dirigido por ninguém menos que David Fincher (“A rede social”). No elenco, Daniel Craig como o jornalista Mikael Blomkvist e (a gatíssima!!!) Rooney Mara como Salander. Mais informações sobre a versão americana você confere no texto da jornalista Erika Azevedo, publicado no blog do Bonequinho.

Os figurões do cinema americano devem confiar muito no 007 Daniel Craig para não repetir a mesma cagada que fizeram com o roteiro do sueco “Deixa ela entrar” (Tomas Alfredson, 2008), que não pode ser comparado ao remake ianque sob responsabilidade de Matt Reeves, lançado em 2010, cujo título original é “Let me in”.

No Brasil, os livros de Larsson foram lançados com os seguintes títulos: (1) Os homens que não amavam as mulheres, (2) A garota que brincava com fogo e (3) A rainha do castelo de ar. O Doidos publicou resenha do primeiro filme à época do lançamento no país. Leia aqui.

Quem não leu os livros só pode estar de brincadeira!

Carlos Eduardo Bacellar

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Forrest Gump da desilusão

Para a amiga @hsroulevich, pelos puxões de orelha (chamados à razão) necessários nos momentos de destempero

Perceber as dimensões paradoxais que tornam intercambiáveis as fronteiras entre amor e ódio e os subprodutos do desgaste psicológico gerados com a aproximação e reaproximação de desejos e expectativas antípodas — pode facilitar o entendimento de como alguém é capaz de desistir da pessoa que ama (e até de si próprio) como gesto de altruísmo máximo.

O desapego, que pode ser caracterizado como um evento traumático ao ocorrer inopinadamente, de forma violenta , pode cobrar um preço mais alto do que a saudade do outro, o medo da solidão, o vazio existencial, a perda de referências, a falta de vontade de seguir em frente. A perda da memória seria o ônus de uma cisão afetiva brusca ou um mecanismo de sobrevivência derivado desse mesmo rompimento, que permitiria ao indivíduo um recomeço (ou simplesmente encontrar um modo de continuar)?

Essa perturbação psicológica é o fim de um lado, mas ao mesmo tempo o início por outro, de “Paris, Texas”, obra-prima do diretor alemão Wim Wenders, autor dos magistrais “Asas do desejo” (1987) — o verdadeiro “Cidade dos anjos” — e “Medo e obsessão” (2004).

Neste drama, orçado em £1,162,000 — que rendeu ao realizador, além da Palma de Ouro, os prêmios Fipresci (láurea concedida pela Federação Internacional de Críticos de Cinema, colegiado de críticos e jornalistas especializados) e do Júri Ecumênico no Festival de Cannes de 1984 , a desolação da alma e a geográfica são conjugadas logo nos minutos iniciais, quando as câmeras de Wenders acompanham (causando enorme estranhamento) a bizarra peregrinação de um homem pelo deserto, aparentemente rumando para a civilização mais próxima, diria o bom-senso.

Logo descobrimos que se trata de Travis Henderson (Harry Dean Stanton, estupendo), pai de família e irmão querido desaparecido há quatro anos. E parece que tudo que ele não quer é ser encontrado. Acionado pelo médico de uma cidade situada perto de Deus me livre, depois de onde Judas perdeu as botas, perdida em algum ponto do deserto texano, Walt (Dean Stockwell), irmão de Travis, viaja para encontrá-lo e trazê-lo novamente para perto da família, teoricamente o seu lugar (pelo menos o lugar a que Walt acredita que ele pertence). O que ele não sabia é que seria uma missão de resgate, do corpo e da mente, e exigiria mais do que o (simples) gasto extraordinário de algumas centenas de dólares.

Encontrando Travis, Walt descobre que ele perdeu a memória, ou parece que teve seu histórico social e emocional bagunçado por algum trauma. No decorrer da narrativa, o diretor esculpe na encenação a desconstrução do passado de Travis, desvelando os motivos que o levaram à misantropia.

Casado com uma mulher bem mais nova, Jane, vivida pela afroditiana Nastassja Kinski (“One night stand”, 1997), pai de Hunter, menino agora criado pela família de Walt, após ser abandonado pela mãe, Travis tinha tudo para quem o via de fora. Quem  olhasse mais atentamente perceberia que o amor, naquela relação, agia como um veneno: na dosagem correta poderia salvar; se fosse administrado fora da prescrição recomendada pelo equilíbrio emocional, poderia ser devastador.

Atormentado pelo ciúme, aditivado pela possessividade, Travis desestabiliza os alicerces de uma relação que começou intensa, mas foi esfacelada com a mesma força pelo descompasso de vontades (ou ausência delas). Jane, imatura e despreparada para os desafios da vida a dois, mingua frente aos anseios e ao comportamento agressivo de Travis. Polarizados pelas inadequações (idiossincráticas) do gostar, os dois sentem a história de amor desandar para um roteiro de terror, com Hunter, rebento amado/odiado, o filho eterno tezziano do casal, na beira do precipício do descontrole dos pais.

Despreparado para rejeição e perda, Travis parte sem destino, almejando encontrar-se novamente consigo mesmo em algum ponto futuro, livre da dor. Só que a dor não é uma companheira de viagem que ele pode despistar com a distância ou confundir com a prestidigitação de seus sentimentos, mas um parasita que o acompanha e devasta seu cerne.

Resgatado pelo irmão de seu calvário, ou da anestesia do espírito, Travis reencontra o filho e, revitalizado, junto com Hunter, parte numa nova jornada em busca de Jane. Lúcido novamente, Travis precisará de todo seu controle para desenredar Jane da espiral de decadência que a levou para trabalhar num zoológico humano, um peep show que comercializa corpos em detrimento da dignidade. Travis e Jane, frente a frente numa cabine de pecados enrustidos, protagonizam um dos melhores diálogos (ou seria um monólogo?) da história do cinema, rivalizando, em profundidade e categoria dramática, com a interação verbal de Christopher Walken e Dennis Hopper em “True romance” (Tony Scott, 1993).

 

Este road movie dentro de um road movie calcado no expresso (verbo) e no impresso (gravado com tinta invisível em algum lugar entre o coração e o estômago) amplificado em sua melodia triste pela fotografia de Robby Müller, responsável pela formatação da luz em “Ghost dog: the way of the samurai” (Jim Jarmusch, 1999) e “Dancer in the dark” (Lars von Trier, 2000), e pela trilha sonora aclimatadora de Ry Cooder — traduz a perda inevitável (e necessária) para a aceitação das incongruências do outro e a valorização do recomeço, mesmo após toda destruição provocada pelas atitudes intempestivas.

O título do filme — que remete a Paris, no Texas, e não à cidade francesa — reflete a confusão de identidades, a quebra de expectativas, a contradição de sujeitos, a desilusão com o real, mas, também, nos mostra que a beleza pode surgir dos lugares mais improváveis. Uma nova Dubai depende só da vontade e da riqueza interna de quem está envolvido.

Na produção roteirizada por L.M. Kit Carson e Sam Shepard, Wim Wenders não fala (somente) de identidade, mas da possibilidade de construir novamente a partir da fragmentação excruciante. No centro, um núcleo familiar imperfeito (como todos os outros): unidade indivisível (e fundamental) do ser que precisa encontrar seus caminhos, mesmo que (outro oxímoro…) divergentes.

Carlos Eduardo Bacellar

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