A vingança é o agente anticoagulante que potencializa a estética hemorrágica do diretor Quentin Tarantino. Com “Bastardos inglórios” (2009), Tarantino abriu as feridas da História para expurgá-la de seus horrores propondo um revisionismo dos fatos como forma de estimular o revanchismo catártico da consciência coletiva. “Sacanas sem lei” – o genial título do filme em Portugal – é uma obra audiovisual politicamente (in)correta da História Mundial, que, por meio da paródia, deturpa tudo que aprendemos nos livros didáticos. A correção na ficção dos tropeços da humanidade torna a disciplina, ensinada à Leandro Narloch, muito mais interessante. O alvo (ou vítimas) de Aldo Raine, o Apache, e seu grupo de açougueiros treinados em técnicas militares eram os nazistas.
“Django livre” volta os olhos injetados de sangue criativo do realizador de “Cães de aluguel” (1992) para a escravidão em solo americano no período pré-Guerra de Secessão (1861-1865), conflito que colidiu os Estados Confederados do Sul – latifundiário, aristocrata e pró-escravidão –, que entraram numa de se separar da União, com o Norte industrializado, avesso à dinâmica desumana entre a casa-grande e a senzala e cujo lema era unidos venceremos. O título do filme faz alusão ao “Django” (1966) de Sergio Corbucci, em que Franco Nero, que faz uma ponta na versão tarantinesca abolicionista, interpreta o pistoleiro misterioso que carrega um caixão-paiol onde repousa uma metralhadora Gatling pronta para aerar carne humana. Apesar disso, não deixa de ser uma homenagem ao primeiro diretor que vem à cabeça quando pensamos no rótulo spaghetti western, de quem Tarantino é fã: Sergio Leone.
O Django (Jamie Foxx, apostando no mesmo tipo metidão de sempre, um rapper invocado de esporas e pistolas, tentativa de emular a atitude cool, distanciada, debochada e paródica do pistoleiro sem nome interpretado por Clint Eastwood na trilogia dos dólares de Leone) de Tarantino é um escravo que arrasta grilhões no traslado para ser comercializado no atacado. A alta do mercado de corpos faz com que seu caminho cruze com o do doutor King Schultz (Christoph Waltz brilhante, mesmo evitando sair da zona de conforto ao decalcar sua atuação da que empreendeu em “Bastardos…”, filme em que interpretou o coronel poliglota nazista Hans Landa), um ex-dentista que mudou de ramo pela força das circunstâncias e agora trabalha como caçador de recompensas. As extrações continuam, só que agora de vidas.
Django, auxiliado pela providência, troca sua alforria por informação. Os dois unem forças para ganhar alguns dólares adubando o solo com cadáveres de procurados pela justiça. O novo colecionador de cartazes wanted dead or alive aprende rápido a derramar sangue sem macular seus pudores. Em troca do auxílio de Django Freeman, sobrenome que ironicamente expressa a nova condição social do ex-escravo, Schultz se compromete a dividir um quinhão de seus lucros e a ajudar o novo amigo a resgatar sua amada Brunhilde (Kerry Washington, a Sheron Menezzes do Bronx) do tronco. Django e Brunhilde sofreram penalidades draconianas por tentarem escapar do antigo dono. Foram separados e tiveram os corações despedaçados a chibatadas.
Na realidade, resgatar não seria o melhor verbo, já que Brunhilde é propriedade do latifundiário Calvin Candie (Leo DiCaprio, psicopata no papel de um vilão de trejeitos circenses arrotando francofilia), um dos precursores do MMA nos EUA do século XIX. Django e Schultz precisam negociar Brunhilde como mercadoria, sem despertar as suspeitas de Candie para algo além de uma simples transação. O problema é que, em suas fileiras de lacaios, Candie conta com a astúcia e a experiência do velho negro Stephen (Samuel L. Jackson, soberbo no papel do corvo de mau agouro que desconfia até da própria sombra e deseja se refestelar em carniça).
Macarronada à Tarantino de US$ 100 milhões
O força do filme está no que Tarantino, em quem a palavra predomina sobre a imagem, tem a oferecer de melhor. Anote aí a receita da macarronada à Tarantino:
– Subversão das convenções;
– inversão do binômio causa e efeito, quebrando a cronologia da narrativa;
– diálogos digressivos e extensos, que suspendem a ação e sublinham a falta de lógica da interação, funcionando como jogos retóricos que dificultam a apreensão do real objetivo dos personagens – as longas conversas prolongam os momentos prévios e posteriores aos atos de violência em si, o que aumenta a expectativa de quem assiste;
– cenas prosaicas que comportam o absurdo;
– momentos de reverência ao cinema exploitation americano da década de 1970, no caso de “Django livre”, blaxploitation, e ao cinema de horror italiano das décadas de 1970-1980 (capitaneado por Dario Argento, mestre do subgênero giallo), que lançam, junto com a crueldade mórbida, um olhar irônico sobre as sequências de glóbulos vermelhos em profusão;
– utilização de flashbacks na construção narrativa, mas infensos ao cinema clássico, em que remetem à subjetividade do personagem (rompem com a linearidade respeitando a causalidade por meio do ato de lembrar): em “Django livre”, em um estratagema semelhante, mas não tão radical como na montagem labiríntica de “Cães de aluguel” – filme no qual os flashbacks são apresentados como segmentos sem aparente relação causal, (des)organizados com o objetivo de impedir que o espectador reordene os eventos em sequência cronológica enquanto assiste –, há a interferência lúdica de um narrador que manipula a trama ao retornar no tempo;
– fotografia hiper-realista (herança da estética de Sam Peckinpah), clicada por Robert Richardson, que explora ao máximo situações de agressão e choque;
– paródia com que trata o spaghetti western e o tema tabu da escravidão;
– humor negro;
– trilha sonora magistral, que aproveita nos créditos de abertura a música tema do filme original, composta pelo argentino Luis Bacalov, além de contar com a contribuição do mitológico compositor italiano Ennio Morricone, cuja biografia – atrelada a parceiras antológicas com Sergio Leone – se mescla com o conceito do subgênero spaghetti western, em quatro faixas: The braying mule, Sister Sara’s theme, Ancora qui (em coautoria com a cantora e compositora italiana Elisa Toffoli) e Un monumento;
– pólvora a gosto.
O roteiro de “Django livre”, assinado pelo próprio Tarantino, subverte o protocolo da ideologia escravista como forma de cuspir na cara do preconceito e arreliar valores morais viciados. Django, após ser libertado, rapidamente assume o papel de liderança e contraria o pensamento atrofiado, passando de figurante a protagonista. Schultz, eclipsado pelo ímpeto do companheiro, entuba sua nova condição de wingman. Algo semelhante ocorre nos domínios de Candie, que passa por idiota quando Stephen desvela a verdadeira intenção dos inusitados convidados do patrão e demonstra que é muito mais que um simples escravo responsável por gerenciar a casa-grande. Ele é o cérebro de um sistema que perpetua a ideologia da dominação, invertida para o espectador no jogo cênico de Tarantino. De quebra, o diretor ainda brinca com os especialistas ao embaralhar as categorias empedernidas do Oscar.
Os únicos poréns são as encheções de linguiça – desnecessárias, prolongam a duração do filme, que contabiliza 165 minutos, com poucas viradas, e encurtam nossa paciência – e alguns personagens que, apresentados, não se realizam, meras distrações. Nada no cinema de Tarantino até então foi mal resolvido, mas, neste filme, um roteiro cheio de gorduras passa essa impressão. É complicado afirmar isso, pois Tarantino é doutor em cinema.
Campeão mundial das teses: novo defloramento sem necessidade de reconstituição cirúrgica do hímen e homossexualismo subjacente ao roteiro
Primeira tese tarantinesca: Like a virgin, da Madonna > “A história de uma mulher rodada, que já tinha dado muito, e acontece o quê? Um dia ela encontra um cara com a piroca enorme que faz ela sentir a pressão de quando era virgem.”
Segunda tese tarantinesca: “Top gun” (1986) > “Lembra desse filme? Filme de viado, moscão, varejeira, por quê? O Tom Cruise e o Iceman [Val Kilmer] passam o filme inteiro suado, sujinho de areia, jogando vôlei e trocando olhares em câmera lenta e decidindo quem é que vai na traseira de quem.”
Roteiros seriam fragmentos de um épico
Fonte:weheartit.com
Se a tendência for mantida, qual será a próxima correção histórica que Tarantino irá nos propor? O obrigatório curta “Tarantino’s mind”(2006), da produtora 300ml, de cujo roteiro extraímos as teses tarantinescas supracitadas — a segunda uma reflexão acerca da homossexualidade latente em “Top gun” que Tarantino explicita numa ponta como ator na produção “Vem dormir comigo” (2004), de Rory Kelly –, gaba-se de ter decifrado o código criado pelo diretor de “Pulp fiction” (1994). Na lógica do curta, protagonizado por Selton Mello e Seu Jorge, todos os roteiros de Tarantino são na verdade um só filme épico, dividido em várias partes – com exceção de “Jackie Brown”, adaptação de Rum Punch, romance do escritor americano Elmore Leonard. Só é preciso juntar as peças do quebra-cabeça.
Kill cowboy!
Que tal um exercício de imaginação? Aldo Raine, o Apache, escalpelador de nazistas… Django, um John Wayne com excesso de melanina e desvantagem vertical de 15cm em relação ao Duke… Se um filme envolvendo a releitura das iniquidades impingidas à cultura indígena dos EUA estiver nos planos do realizador de “À prova de morte” (2007), um “Rastros de ódio” (1956) ao avesso, tarantiniano, conferindo novas conotações ao termo peles vermelhas, John Ford e Howard Hawks devem estar golpeando a tampa de seus caixões como a Noiva enterrada viva de “Kill Bill: Vol. 2” (2004).
Carlos Eduardo Bacellar
p.s. Uma curiosidade… Jeff Dawson explica que o nome de Tarantino é a junção de Quentin, heroína de O som e a fúria, romance do Nobel de Literatura americano William Faulkner, com o sobrenome do pai biológico do diretor. Tarantino substituiu Zastoupil, sobrenome de seu pai adotivo, Curt.
p.s.2 Quase 3h de filme é um desafio para o controle de necessidades fisiológicas. Para não perder um segundo de “Django livre” eu estava disposto a comprometer minha dignidade, mas me segurei bravamente. Líquidos em excesso e ar condicionado não são uma boa combinação. Tarantino valeria uma cueca encharcada.